É verdade, mas não há provas

Uma pessoa, uma centena de pessoas e um Boeing. O que eles têm em comum? Podem desaparecer de uma hora para outra

Ivone Zeger
18/Set/2019
Advogada, consultora jurídica, palestrante e escritora.
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É verdade, mas não há provas

Catástrofes naturais e acidentes de grandes proporções comovem o mundo. Na catatonia do cidadão comum que lê as notícias ou vê na televisão as imagens aterradoras reside a sensação de que nada pode ser feito a não ser lamentar. Acidentes de avião são episódios exemplares dessa situação. O último ao qual tivemos notícia ocorreu com o avião da Malaysia Airlines, que percorria o voo MH370, com destino a Pequim.

Foram 227 pessoas e 12 tripulantes que deixaram de existir junto com o Boeing 777, logo após a decolagem de Kuala Lumpur, na Malásia. Radares, rondas de submarino e o que há de mais sofisticado em buscas aeronáuticas não foram recursos suficientes para encontrar sinais de passageiros ou da aeronave. Meses depois, se desejava ao menos encontrar provas do acidente. Nada. O Oceano Índico parece ter engolido o avião.

Em casos como esses, em que não há uma única prova do desaparecimento, os parentes das vítimas mal podem conceber o falecimento, pois não há corpos. A companhia aérea não tem como avaliar se o erro foi humano ou mecânico. A companhia de seguro elenca hipóteses mirabolantes para tentar adiar o óbvio, que é o pagamento do seguro.

De acordo com dados divulgados, a aeronave estava assegurada em valores que podem chegar a US$ 100 milhões. Mas especialistas garantem: ainda que não seja encontrada uma única peça do avião, a companhia de seguro tem de fazer o combinado, o que pode incluir até indenizações aos parentes das vítimas.

Exaustos e desesperançados, quando percebem que precisam voltar à vida normal e tomar as providências cabíveis a partir da hipótese do falecimento, os parentes das vítimas se dão conta de que necessitam do atestado de óbito. O que fazer? Em casos assim, a comoção mundial, a imprensa, as pressões não dão margens a qualquer manobra do tempo. Por mais estranhos que sejam os resultados das buscas, as instituições envolvidas – sejam públicas ou privadas – lançam mão da morte presumida. O prazo para sua decretação pode variar dependendo do país, mas esse instituto legal é reconhecido no mundo todo.

No Brasil, há várias menções à morte presumida nas leis. Sem a sua decretação, parentes de vítimas de catástrofes como quedas de avião, incêndios, naufrágios, ou mesmo em casos individuais de desaparecimento não podem dar andamento a questões como recebimento de seguros por morte, indenizações, fechamento de contas bancárias, e na abertura de inventários e partilhas de bens.

O artigo 7º do Código Civil – lei 10.406, de janeiro de 2002 – possibilita a decretação da morte presumida sem um prazo específico em dois casos explicitados nos incisos da lei.

No inciso I “se for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida” – como é o caso das vítimas de grandes tragédias, como quedas de avião, naufrágios, terremotos ; no inciso II, “se alguém, desaparecido em campanha ou feito prisioneiro, não for encontrado até dois anos após o término da guerra”. O parágrafo único da lei observa o seguinte: “A declaração da morte presumida, nesses casos, somente poderá ser requerida depois de esgotadas as buscas e averiguações, devendo a sentença fixar a data provável do falecimento”.

Se um Boeing pode desaparecer, por que não uma pessoa? Há muitos casos assim. Quando a pessoa desaparece, mas não esteve envolvida em algum acidente, pelo menos não de grandes proporções e público, ou se não se dirigiu para áreas de conflito armado, ou seja, se não há indícios diretos de risco de vida, o primeiro passo a ser tomado é buscar a decretação de ausência. O artigo 22º do Código Civil define que “desaparecendo uma pessoa do seu domicílio sem dela haver notícia, se não houver deixado representante ou procurador a quem caiba administrar-lhe os bens, o juiz, a requerimento de qualquer interessado ou do Ministério Público, declarará a ausência, e nomear-lhe-á curador”.

A ausência passa a ter caráter de morte presumida quando o juiz autoriza a abertura da sucessão dos bens, ou seja, a partilha de bens que o ausente deixou, de acordo com o artigo 6º: “A existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva”.

No caso de ausência e frente a processos de herança e sucessão, há algumas etapas a serem observadas. A princípio, como foi dito, o juiz define o curador, espécie de administrador dos bens do ausente. Após um ano do desaparecimento, ou se a pessoa deixou algum procurador, mas está sumida há mais de três anos, familiares ou pessoas diretamente interessadas podem pedir a abertura da sucessão provisória. Ou seja, tem início a abertura de inventário e partiha de bens.

Eventualmente, alguém que desaparece pode reaparecer. Se o desaparecido retorna antes da abertura da sucessão provisória, ele se mantém normalmente como proprietário de seus bens. Mas se a sucessão provisória já foi aberta, o parágrafo único do artigo 33º explicita que: “Se o ausente aparecer, e ficar provado que a ausência foi voluntária e injustificada, perderá ele, em favor do sucessor, sua parte nos frutos e rendimentos”.

Como diz um antiquíssimo ditado popular, “quem foi para Portugal perdeu o lugar”. Por outro lado, se o ex-desaparecido conseguir provar que a ausência não foi voluntária, por meio de ação judicial, pode reaver a propriedade de seus bens.

Se o desaparecido não retornar, após o prazo de 10 anos, a sucessão dos bens é considerada definitiva. Quanto a recebimentos de seguros por morte, vale lembrar que a maioria das seguradoras se apóia no conceito de morte presumida sem decretação de ausência para pagar os valores, pois justamente se referem a situações nas quais a morte é a única hipótese viável. O mesmo não se dá quando existe apenas a decretação de ausência.

Em especial no que se refere à morte presumida sem decretação de ausência, embora o Brasil seja um país no qual a participação em guerras e conflitos armados quase inexista, é um instrumento legal de valor extraordinário para aqueles que trabalham em zonas de conflito, como jornalistas, médicos ou embaixadores cujas famílias continuam residentes no Brasil. Ou, infelizmente é fato, também para aqueles que residem ou atuam em áreas conturbadas nas terras tupiniquins.

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