Desamor! De pai para filho

Pode-se obrigar um pai a amar seu filho? Cabe a nossos senadores definir um conceito tão elusivo quanto “assistência moral” e penalizar por “conduta ilícita” quem não se ater a ele?

Ivone Zeger
23/Mar/2016
Advogada, consultora jurídica, palestrante e escritora.
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Essa a pretensão do Projeto de Lei 700/07, de autoria do senador Marcelo Crivella, passou por análise na Comissão de Justiça e Cidadania e Legislação Participativa do Senado, tendo sido remetida em outubro de 2015 à Câmara dos Deputados para votação.

O projeto propõe mudanças no Estatuto da Criança e do Adolescente a fim de transformar o chamado “abandono moral” em conduta ilícita. Se for aprovado, o juiz poderá impor reparação de danos ao pai ou à mãe que deixar de prestar assistência afetiva aos filhos.

Em outras palavras, esses pais terão de pagar por seu “desamor”. E não só com dinheiro. As penalidades previstas também incluem seis meses de detenção e a perda do poder
familiar.

E como definir desamor em termos legais? O PLS 700/07 define a assistência afetiva devida pelos pais aos filhos menores de 18 anos como a orientação quanto às principais escolhas e oportunidades profissionais, educacionais e culturais, a solidariedade e o apoio nos momentos de intenso sofrimento ou dificuldade, e a presença física espontaneamente solicitada pela criança ou adolescente e possível de ser atendida. 

Essas regras se aplicam não apenas aos pais que detêm a guarda dos filhos, mas também aos que não detêm. 
De acordo com o senador Crivella, a lei não pode mudar a consciência dos pais, mas pode ajudar a “prevenir e a solucionar” casos intoleráveis de negligência para com os filhos. Será que pode mesmo?

O principal problema do projeto é tentar quantificar coisas que não podem ser quantificadas. Como se mede a solidariedade e o apoio nos momentos de sofrimento? Pode-se esperar algum afeto de um pai que visita o filho apenas por medo da punição? E como se sentiria a criança ao ter de lidar com a presença forçada de um pai ou de uma mãe emocionalmente distantes? 

Para tornar essas questões ainda mais complicadas, temos, ainda, a possibilidade da indenização. Ao se acrescentar a compensação financeira a situações altamente subjetivas e emocionais, estaremos certamente incentivando o litígio judicial.

Mais famílias se digladiando nos tribunais, mais ações para serem julgadas por um sistema que já está sobrecarregado e mais sofrimento para aquela a quem se deveria proteger – a criança.

Para justificar seu projeto, o senador Crivella diz que o judiciário já está julgando ações de indenização por abandono moral, com resultados nem sempre favoráveis ao reclamante. 

A nova lei, espera ele, poderia inverter essa situação. No entanto, o argumento utilizado a favor do projeto é o que melhor expõe sua inadequação.

É verdade que os magistrados já estão apreciando esse tipo de ação, e também é verdade que os resultados são variáveis. Mas é exatamente assim que deve ser. Em matéria tão delicada, cabe ao juiz valer-se de sua sensibilidade e discernimento para analisar caso a caso.

Há pouco tempo, o Tribunal de Justiça de São Paulo deu ganho de causa a um rapaz, portador de um problema físico, que ingressou com ação indenizatória por abandono afetivo contra o pai.

Em primeira instância a ação tinha sido julgada improcedente, pois o juiz entendeu que o pai, previamente condenado a reconhecer a paternidade e a pagar pensão alimentícia, não poderia ser coagido a dar um amor que não sentia.

Para o TJ, porém, se o abandono afetivo ultrapassa os limites do desinteresse e envolve atos de humilhações e discriminação, cabe, sim, reparação pelo dano moral causado. 

E não foi preciso que houvesse nenhuma lei criminalizando o abandono moral para que os juízes do TJ chegassem a essa decisão.

Importa ainda lembrar que na atualidade, qualquer relação parental que suscite sofrimento ou mágoa poderá ser passível de ressarcimento em forma de indenização.

Recordo o leitor  da decisão inédita do Supremo Tribunal de Justiça em maio de 2012 que obrigou um pai a pagar indenização por danos morais decorrentes do abandono afetivo de sua filha. 

A relatora nesse processo do STJ, Ministra Nancy Andrighi foi clara em sua argumentação quando ao final decide: “Em suma, Amar é Facultativo, Cuidar é Obrigação”.

O Estado Brasileiro já é signatário de compromissos de consenso internacional sobre os direitos de nossas crianças e adolescentes, ganhando status de Emenda Constitucional –Constituição Brasileira art. 5º § 3º  - destacando a Declaração dos Direitos das Crianças, adotada pela ONU em novembro de 1959 e ratificada pelo Brasil no ano de 1990, cujos princípios tem norteado as decisões de nossos juízes quanto à proteção social, o desenvolvimento físico, mental, moral e espiritual, de forma a garantir aos menores condições de liberdade e dignidade com o desenvolvimento completo e harmonioso de sua personalidade através do amor e compreensão.
             
Temos que ter muito cuidado ao tentar legislar sentimentos humanos. Ou em breve teremos esposas processando maridos que deixaram de amá-las, namorados processando namoradas pelo fim do namoro e por aí afora.

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