Conflitos com redes levam ex-franqueados à Justiça
Amargando prejuízos, pequenos empreendedores do setor se unem em audiência pública em São Paulo para tentar reaver suas perdas

Franquia é ilusão? Os números mostram o oposto: apesar da crise econômica, o modelo colaborativo fez com que o setor crescesse 7,6% no primeiro trimestre de 2016, faturando mais de R$ 33 bilhões, segundo dados da Associação Brasileira de Franchising divulgados nesta segunda-feira (30/05).
Mas, olhando de perto, ou seja, no âmbito das relações franqueador-franqueado, o quadro é diferente.
Para um grupo de ex-franqueados de marcas populares, como os supermercados Dia, a rede de calçados, bolsas e acessórios ItBeach, e as chocolaterias Brasil Cacau e Cacau Show, a resposta é “sim.”
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Amargando prejuízos financeiros, e em alguns casos, até familiares, empreendedores lotaram um dos auditórios da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) na quinta-feira (19/05) para participar de uma audiência pública realizada a pedido do Sindicato dos Franqueados do Estado de São Paulo (Sindifranqueados-SP).
Alguns, vindos da própria capital e do interior paulista. Outros, de localidades distantes, como o Pará. E até da Espanha e Argentina. Todos com um só objetivo: denunciar os sérios problemas gerados por essa relação.
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Querem reivindicar na Justiça, com apoio do Ministério Público, formas de minimizar suas experiências malsucedidas ao se associarem a redes de franquias.
O caso mais emblemático, que deu origem ao Sindifranqueados-SP por ex-franqueados em 2013, é o da rede espanhola Dia. Em três dos cinco países onde a rede tem operação (Brasil, Espanha e Argentina), existem ações coletivas contra o supermercado.
A obrigatoriedade de comprar exclusivamente da rede Dia a cada dois dias, a política de preços que gera margens menores, a necessidade de deixar imóveis em caução como “garantia” na compra de mercadorias, e até maquiagem de balanços foram alguns casos expostos e comprovados com documentos por ex-franqueados na audiência pública.
De acordo com José Carlos Blat, promotor de justiça do Ministério Público de São Paulo presente à audiência, o caso da rede espanhola é investigado desde 2010. Portanto, deve ser tratado “de forma urgente”, pois necessita de fiscalização nas esferas criminal, de defesa do consumidor e de sonegação fiscal.
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Isso porque segundo o promotor, foi detectado nessa investigação que os problemas com o Dia não se configuram simples fraude contratual, mas de um “verdadeiro caso de estelionato”, em que empreendedores assinavam contratos, entravam muitas vezes com capital único e acabavam enganados.
“É um modus operandi que têm levado diversas famílias à bancarrota”, afirma o promotor.
Jamil Georges Soufia, presidente do sindicato e ex-franqueado da rede, conta que o rescaldo de sua passagem pelo Dia foi uma dívida de R$ 1,5 milhão com bancos.
Sendo a própria rede a fornecedora das mercadorias, quem é franqueado fica sempre devendo, já que a margem em alguns produtos, com preços atrativos, é mínima, e em outros, não há saída para compensar, afirma.
O modelo de operação baseado em manipulação de estoques, falta de mercadorias, suspensão de pedidos e entrega de produtos próximo à data de vencimento, entre outros, são uma prática comum à rede, confirma o advogado Daniel Perales.
Perales representa 60 franqueados da Espanha, onde fica a matriz da rede, além de franqueados de outras 11 marcas com quadro parecido.
“Nosso processo já dura um ano e meio, e a cada dia vamos acrescentando ações. Quem ‘cai’ nessa rede, cai no engano. Portanto, não caiam”, alerta.
Representando 194 franqueados na Argentina, onde há 1,6 mil demandas trabalhistas e criminais contra o Dia, o advogado Alejamdro Sanchez Kalbermatten, da Associação de Vítimas de Franquias na Argentina, também presente à audiência, que citou os números, discorreu sobre a “política comercial perversa” da rede, que exige “muito dinheiro” de quem investe na operação.
“Há cláusulas abusivas que fazem esses franqueados assinarem até a hipoteca de suas casas para participar do negócio. Mas a diretoria trata de ocultar essas denúncias dos meios de comunicação.”
Para Ângelo Agulha, vice-presidente do Sindifranqueados-SP e também um ex-franqueado do Dia que conduziu o debate na Alesp, a proposta dessas redes é “deficitária.”
“São famílias que empenham seu futuro, mas são tratadas sem respeito e sem respaldo. Depois, são simplesmente substituídas por outros (franqueados).”
MAIS CASOS
Não só o Dia, mas outras redes, segundo disse Jamil Soufia na audiência pública, atribuem os problemas ao “risco do negócio”. Na ponta do lápis, porém, a conta não fecha.
“Você entra para usar o know how de quem ‘entende’, mas no final ouve apenas que é você quem não soube gerir”, afirma, lembrando que há uma ação coletiva ligada ao sindicato que envolve mais de 200 ex franqueados de diversas redes, além de atuais que não conseguem se desligar do negócio.
Os casos apresentados por franqueados de outras redes, que não podem se identificar pois seus casos correm sob sigilo de Câmaras Arbitrais, também eram críticos.
Na Cacau Show e Chocolates Brasil Cacau, ex-franqueados citaram como um dos pontos cruciais o bloqueio de fornecimento em datas que mais vendem, como Natal e Páscoa.
Além disso, queixaram-se da não entrega de mercadorias na quantidade necessária, mas determinada pela rede. Ou ainda, a prática de promover a concorrência desleal entre os próprios franqueados, entre outras.
“Quanto mais a gente fatura, mais a gente paga”, afirma. “Mas se por algum motivo você deixa de pagar R$ 1 que seja à rede, não consegue abastecer seu estoque nem à vista. E adeus caixa”, afirmou um franqueado.
Outra franqueada da Brasil Cacau, que já operou duas lojas da rede, disse que, apesar de investir em um modelo de negócio pronto, quando há problemas não há suporte nenhum da rede na gestão.
Principalmente quando chega ao ponto de não sobrar margem suficiente para o negócio andar.
“Quebrados, como vamos conseguir pagar a multa contratual (de R$ 30 mil)? Você se ilude, pega até dinheiro emprestado para abrir um negócio, e o que sobra é só raiva e frustração”, disse.
No caso da ItBeach, alguns franqueados relataram, entre outros problemas, que já na Circular de Oferta de Franquias (COF) havia a obrigatoriedade de adquirir lançamentos da rede toda semana.
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Ou de fazer promoções “sufocando” o estoque dos franqueados e comprometendo suas margens de lucro, já que o custo é só de quem opera a loja.
“Comprei uma franquia de calçados e bolsas, pois fiquei encantada durante a feira (da ABF.) Mas depois descobri que muita gente abre essas redes só para nos extorquir, sangrar e depois fechar”, diz. “E que venha o próximo, pois quem fica com o prejuízo é a gente”, disse uma ex-franqueada.
Celso Gianazzi, auditor fiscal da Prefeitura de São Paulo presente à audiência, mencionou um caso de fraude fiscal também relatado recentemente –e que levou à autuação milionária de uma rede de franquias: o não recolhimento de impostos, como ISS, sobre os royalties pagos pelos franqueados.
“Conseguimos esse dado pelo caminho inverso (via franqueados). Por isso é importante fornecer esses dados na investigação, para não configurar como conivência (na sonegação fiscal)”, afirmou.
Esse ponto pode gerar problemas até a acionistas minoritários, segundo o promotor José Carlos Blat. “É uma investigação que envolve inclusive a CVM (Comissão de Valores Mobiliários).”
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Além de transformar essas demandas em uma “ação pública”, conforme sugeriu a advogada argentina Patricia Noemi, o desequilíbrio nessa relação mostra a necessidade de uma “revisão da Lei de Franquias”, disse o advogado Marcellus Pereira, que representa o Sindifranqueados-SP.
“Há redes que não enxergam os franqueados como parceiros de negócios, mas como cobaias. Esse é o momento de discutir um marco regulatório do setor, para desfavorecer a prática desses crimes.”
No final da audiência pública organizada pelo deputado estadual Carlos Gianazzi (PSOL–SP), após o acolhimento das denúncias e da documentação, ficou definido que seriam acionados os ministérios públicos estadual e federal, as receitas dos três entes federativos e até a Polícia Federal, além da Comissão de Direitos humanos da Alesp para dar continuidade ao processo.
“Além de tomar medidas para reparação econômica desses franqueados, é preciso realizar um trabalho preventivo para que outros não caiam na mesma armadilha”, finalizou o parlamentar.
OUTRO LADO
Procuradas pelo Diário do Comércio, as redes se posicionaram quanto às denúncias dos franqueados, informando estarem sempre abertas à conversação e ao cumprimento da legislação vigente.
A rede Dia, por exemplo, informou que sua política comercial é estabelecida “desde o início das tratativa de negociação para contratação com o franqueado, e segue parâmetros legais e de mercado utilizados por outros sistemas de franquia.”
Também disse que respeita a liberdade de manifestação dos ex-franqueados, e informa que não comenta casos em tramitação no Judiciário ou na esfera administrativa perante órgãos públicos.
“A rede reforça seu pioneirismo e expertise atuando no setor de franqueias desde 1989, e prova de forma exitosa seu modelo operacional com mais de 3 mil lojas em cinco países”, completa a nota.
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Já a Cacau Show, que tem mais de 2 mil lojas distribuídas pelo país, diz “reafirmar”, em seu comunicado, “o compromisso com o desenvolvimento e o crescimento do negócio do seu franqueado e, por isso, segue estritamente a legislação, além de agir em consonância com o disposto no contrato de franquias.”
A denúncia de quebra de lojas por problemas na operação de 2015 para cá – de 690, restaram menos de 400, segundo os franqueados – foi o alvo da resposta do Grupo CRM, controlador da marca Chocolates Brasil Cacau (e também da Kopenhagen).
Em seu comunicado, o grupo diz que o movimento da marca durante 2015, considerando o cenário econômico do país, foi “bastante natural nos fechamentos de lojas e nas aberturas de novos pontos.”
Além disso, o grupo CRM possui um comitê de gerenciamento de crise que trata individualmente cada caso”, completa a nota.
Por último, a ItBeach, da qual alguns os franqueados afirmaram que foram fechadas 88% das lojas devido aos problemas relatados, afirmou em nota que conta com 41 unidades franqueadas no Brasil, e um plano de expansão que deve se aproximar das 50 unidades ainda em 2016. Também informou que teve apenas quatro lojas com pedido de encerramento até abril deste ano.
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A rede informou ainda que não tem como politica comentar as relações comerciais com seus franqueados, mas “reitera que está sempre disposta a ajudar qualquer franqueado em eventual dificuldade, até mesmo os que não se adaptaram e desejam repassar a franquia.”
A relação entre franqueador e franqueado é bastante delicada mas, segundo Cláudio Tieghi, diretor de inteligência de mercado da ABF, é preciso lembrar que o sistema de franquias no Brasil está bem consolidado e regido por lei federal.
Isso exige que cada uma das partes cumpra o prometido, e seja transparente quanto ao que foi previamente negociado e previsto na COF.
“Para fazer parte da nossa estrutura há a prerrogativa de cumprir a lei federal”, diz. “Por isso o índice de expulsão de fraqueadoras do quadro da ABF por fraude nessa relação é tão pequeno que não há como medir.”
Mesmo sem comentar a audiência pública, já que, segundo Tieghi “os casos não chegaram ao conhecimento da ABF”, ele lembra que, antes de chegar às vias de fato na justiça, há vários meios de resolver problemas.
O diretor recomenda principalmente dialogar com a própria franqueadora para relatar possíveis problemas. Ou usar os serviços de Câmaras Arbitrais indicadas pela ABF. Ou ainda, negociar de forma amigável o repasse da unidade para um novo franqueado – indice que hoje continua inferior a 1%, segundo a associação.
“Não acumule nem oculte dificuldades da sua administração à rede. Uma vez apresentadas, o natural é a busca conjunta pela solução. Se não acontecer, aí sim violou-se uma questão ética, e é preciso acionar a Comissão da ABF que trata do tema em última instância.”
Fotos Alesp: Karina Lignelli / Imagens e Edição de Vídeo: William Chaussê