Compra de veículos limita recursos para consumo de outros bens
Enquanto as vendas de automóveis crescem, em segmentos como vestuário, móveis e eletrodomésticos elas mostram sinais claros de enfraquecimento
*Com Flávio Calife, economista da Boa Vista SCPC
A mais recente Pesquisa Mensal do Comércio divulgada pelo IBGE jogou um balde de água fria em quem já apostava em uma recuperação mais vigorosa do comércio nos últimos meses do ano.
Se em agosto as vendas do varejo brasileiro surpreenderam positivamente ao crescerem 2% na comparação com julho, já descontados os efeitos sazonais, em setembro a surpresa foi negativa, com queda de 1,3% em relação ao mês anterior.
Especialmente em períodos afetados por eventos atípicos, como este ano, em que o movimento do comércio foi impactado pela greve dos caminhoneiros, em maio, e pela Copa do Mundo, em junho e julho, dados mensais tendem a apresentar maior volatilidade, de forma que a interpretação das variações exige certa cautela.
Neste sentido, a análise da evolução acumulada em doze meses das vendas fornece pistas mais interessantes a respeito do que está acontecendo com o varejo brasileiro neste ano, especialmente quando é analisado o desempenho do comércio varejista por setor.
Como é possível observar no gráfico 1, que apresenta a evolução histórica da variação acumulada em 12 meses do volume das vendas dos principais setores que compõem o varejo restrito – não inclui veículos e material de construção –, os segmentos de combustíveis e lubrificantes, vestuário e calçados e móveis e eletrodomésticos estão comprometendo o desempenho total do comércio varejista neste ano.
No caso do segmento de combustíveis, cujas vendas estão em queda desde 2015, a principal explicação para o recuo neste ano está relacionada à alta dos preços.
As vendas dos setores de vestuário, calçados, móveis e eletrodomésticos, por outro lado, que registraram recuperação em 2017 – quando apresentaram alta das vendas após dois anos de queda –, mostram claros sinais de enfraquecimento em 2018.
Um fator importante por trás deste desempenho é que, neste ano, estes setores não contam mais com o impulso da liberação de recursos do FGTS.
Supermercados e farmácias, por sua vez, que comercializam itens de primeira necessidade, vêm conseguindo manter o ritmo de crescimento das vendas.
Historicamente, este perfil das vendas costuma refletir maior cautela dos consumidores – que, em ambiente de crise e incerteza, tendem a adiar decisões de consumo que envolvam endividamento – e dos bancos – que, ante um aumento do risco de crédito, restringem a oferta de empréstimos.
Foi o perfil observado, por exemplo, na crise recente (2015-2016), quando o desempenho do comércio de bens de primeira necessidade superou o de setores como móveis, eletrodomésticos, vestuário e calçados, conforme é possível observar no Gráfico 1.
Entretanto, o risco de crédito diminuiu bastante ao longo dos últimos dois anos. Segundo o Banco Central, a inadimplência da carteira de crédito com recursos livres das pessoas físicas encontra-se em 4,9%, o menor patamar da série histórica iniciada em março de 2011.
Há, portanto, espaço para o crescimento dos empréstimos e os dados do Banco Central de fato já mostram retomada das concessões, especialmente em linhas de crédito para aquisição de veículos e crédito consignado. Em 12 meses até setembro, enquanto as concessões de crédito com recursos livres para pessoas físicas cresceram pouco mais de 10%, os empréstimos para aquisição de veículos registraram alta de 20%.
Este crescimento dos empréstimos, por sua vez, está associado às vendas de veículos, que apresentam expressivo ritmo de expansão em 2018, conforme é possível observar no Gráfico 2 abaixo –as vendas de materiais de construção ainda mostram aumento neste ano, embora também já apresentem sinais de enfraquecimento.
Assim, uma primeira explicação para o enfraquecimento observado nas vendas do varejo restrito até pode estar na cautela do consumidor diante das incertezas decorrentes da disputa eleitoral – em setembro o cenário ainda não estava definido, é importante lembrar.
Entretanto, há sinais de que, ante a lenta retomada da economia e do mercado de trabalho, o fôlego para a recuperação do varejo esteja bastante limitado, com o endividamento resultante da retomada de projetos maiores – adiados pela crise –, como a troca do automóvel ou a reforma da moradia, claramente comprometendo a disponibilidade de recursos para o consumo em outros setores como vestuários, móveis e eletrodomésticos.
Ou seja, ante o endividamento gerado pela troca do automóvel ou pela reforma da casa, em um cenário de crescimento ainda tímido do emprego formal e da renda, faltariam recursos para consumo de outros itens que não os de primeira necessidade – alimentos e medicamentos.
No Gráfico 2, é possível observar claramente que, enquanto o varejo ampliado (que inclui veículos e material de construção) vem aumentando o ritmo de crescimento, o varejo restrito registra desaceleração, influenciado pelo fraco desempenho dos setores de vestuário, móveis e eletrodomésticos.
Trata-se de uma hipótese que precisa ser investigada mais a fundo, mas parece fazer sentido. A economia até vem melhorando lentamente, mas o orçamento segue bastante limitado, restringindo a capacidade de consumo das famílias. Se entra no orçamento a parcela mensal do financiamento do carro novo, a renovação do guarda-roupa ou substituição da TV por um modelo mais novo acabam ficando para depois.
Seja como for, atualmente não se observam restrições significativas no mercado de crédito, já que a inadimplência das pessoas físicas caiu de forma significativa nos últimos dois anos. Ou seja, o sistema financeiro apresenta hoje perfeitas condições de aumentar a oferta de empréstimos.
As vendas de setores como vestuário, móveis e eletrodomésticos dependem bastante das condições de financiamento, que, conforme já foi dito, estão bastante favoráveis por causa dos juros menores e da maior disposição dos bancos para emprestar.
Uma retomada mais vigorosa das vendas nestes setores, portanto, parece condicionada agora principalmente à recuperação da economia e, especialmente, do mercado de trabalho.
Sem isto, diante do fato de que muitos consumidores parecem estar sem condições de assumir novos endividamentos neste momento, pode ser que até sobre crédito na praça.