Comércio e serviços revolucionam o mercado livre de energia
Dados da Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia (Abraceel) mostram que, de janeiro a junho, 10.956 novos consumidores chegaram a esse mercado, alta de 228% sobre igual período de 2023
Um verdadeiro boom liderado pelos setores de comércio e serviços. É assim que deve ser lido o cenário atual no Brasil do mercado livre de energia. E o maior responsável por esse movimento é a entrada em vigor da Portaria 50/2022, em janeiro deste ano, que mudou o perfil de quem está saindo do mercado cativo – das geradoras e distribuidoras tradicionais.
Até dezembro, apenas grandes consumidores (demanda superior a 500kW e conta mensal na faixa de R$ 140 mil) podiam migrar para o mercado livre. Agora, estabelecimentos atendidos em média e alta tensão e cuja demanda fique em até 500kW também podem negociar a compra de sua energia. Com a mudança, padarias, restaurantes, lojas e salões de beleza, por exemplo, que pagam contas de R$ 10 mil, em média, podem aderir.
Segundo dados da Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia (Abraceel), de janeiro a junho 10.956 novos consumidores chegaram ao mercado. O número é 228% superior ao mesmo período do ano passado e 48% acima de todo o ano de 2023 (7.404 entrantes). Do total, 89,3% estão na faixa até 500kW. E quem puxa a fila são o comércio (2.872) e os serviços (2.809). Os dois setores representam 52% de quem chegou ao mercado livre este ano.
“A liberdade de escolha, com o consumidor no centro do negócio, gera mais competitividade, promove a modernização do setor e, consequentemente, pode resultar em uma energia mais barata”, afirmou o presidente do Conselho de Administração da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), Alexandre Ramos. O presidente-executivo da Abraceel, Rodrigo Ferreira, afirmou que apenas no primeiro trimestre deste ano, mais de 27 mil consumidores já informaram para as distribuidoras o desejo de deixar de comprar energia no mercado regulado e passar a fazê-lo no mercado livre. “Destes, 95% são consumidores de menor porte”, disse Ferreira.
O mercado livre é composto pelos chamados Grupo A (que recebem energia de média e alta tensão) e Grupo B (como residências e micro e pequenas empresas, que somam 90 milhões de consumidores e seguem sem autorização para escolher o fornecedor de energia elétrica). O Grupo A tem cerca de 202 mil unidades consumidoras (UCs), principalmente empresas. Dessas, 49 mil já negociam livremente sua compra de energia, deixando um potencial de migração de outros 153 mil estabelecimentos. Nas projeções da CCEE, haverá mais de 14 mil migrações no segundo semestre de 2024, fazendo o ano fechar com 25 mil novos consumidores do Grupo A. O volume é o maior de toda a história de 25 anos da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica.
O mercado livre de energia elétrica foi legalmente criado pela Lei 9.074 de 1995. Desde então, novos consumidores passaram, paulatinamente, a poder escolher o fornecedor de energia. Um mercado menos fechado significa obviamente um mercado melhor. Rodrigo Ferreira, da Abraceel, enumera benefícios como inovação e serviços sob demanda, com oferta de energia renovável, como eólica e de biomassa. O resultado final, além de maior eficiência e modernização, é uma energia mais barata – a média de redução de preço está em torno de 40% em um combo de produtos e serviços.
GIGANTES
Como grandes grupos de comércio e serviços já estão neste sistema – o que inclui hospitais, fábricas e shoppings –, agora o foco de quem produz energia e comercializa é vender aos menores, como padarias, restaurantes, lojas e indústrias de porte pequeno. Nomes conhecidos do mercado estão nessa onda, caso da Shell, que adquiriu em novembro do ano passado a comercializadora Prime Energy. Segundo Guilherme Perdigão, CEO da Prime Energy, a ideia da Shell foi unir o know-how da Prime, que já atuava no mercado de comercialização, com todo o ecossistema da Shell Brasil. “Estamos fazendo ações em pontos importantes, como aeroportos, estimulando a venda no mercado livre”, disse Perdigão.
Não só players nativos do universo de energia olham para esse mercado. Gestoras e bancos estão multiplicando suas apostas no segmento. BTG, Itaú, Santander, Itaú, Pátria Investimentos e XP já operam para suas carteiras de clientes a solução da compra de energia no mercado livre. O Santander, que atua desde 2019 no setor, anunciou, em março deste ano, a aquisição de 70% da América Gestão de Energia, braço de consultoria e gestão da holding América Energia. O banco disse que após criar sua própria mesa comercializadora de energia, em 2019, se tornou um dos líderes em volume transacionado no mercado livre com mais de R$ 3 bilhões em faturamento. Em agosto do ano passado, o Santander adquiriu 65% da FIT Energia.
Há também dezenas de companhias que tem a energia em seu DNA competindo, como é o caso da Mercurio Partners. A Tyr, por exemplo, é uma investida da Mercurio, trabalha só com energia renovável e está presente em 37 cidades brasileiras. Para chegar ao consumidor, a Tyr tem uma rede de parceiros, formada por mais de 200 representantes e agentes em todas as regiões do Brasil. Segundo a Abraceel, atualmente são 529 comercializadoras autorizadas a vender energia fora do mercado cativo. Com abertura para a média tensão, muitas novas entraram. Em abril de 2022 eram 469.
R$ 100 BILHÕES
O volume de negócios do mercado livre de energia fechou o ano de 2023 em R$ 100 bilhões líquidos. Perdigão, o CEO da Prime Energy, afirmou que o fato de o Brasil ser um grande foco global de produção de energias renováveis também tem dado propulsão na criação de novas usinas de energia no país e, consequentemente, mais empresas estão aparecendo com a solução de venda no mercado livre. “Certamente é um fator importante e que está movimentando o mercado”, afirmou.
O Grupo Ludfor segue a tendência e afirmou que está em crescimento e expandindo suas filiais nos últimos anos. Em 2022, a companhia, de Bento Gonçalves (RS), que atua na geração, gerenciamento e comercialização de energia, abriu o seu primeiro escritório em São Paulo, e agora troca de endereço para um espaço maior. A mudança é motivada pelo aumento da demanda da empresa após a entrada de varejistas no mercado livre, o que gera a expectativa de novos clientes. “Já temos 1 mil novos clientes confirmados para a migração este ano”, disse Douglas Ludwig, diretor-executivo da Ludfor. “Estamos abrindo filiais em Goiânia e Salvador e avaliando escritórios em outros estados.” Com a expansão do mercado livre, o Grupo Ludfor abriu no ano passado uma empresa voltada para atender somente o novo perfil de cliente, a Simplifica Energia, focada exclusivamente nos consumidores varejistas com demanda mínima de 30kW. A expectativa da companhia é alcançar faturamento de R$ 30 milhões nos próximos três anos.
INDÚSTRIA
Pode-se dizer que se vive hoje a segunda onda de migração ao mercado livre. A primeira foi com os grandes consumidores, notadamente do setor industrial. De acordo com uma pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI), divulgada em julho, seis em cada dez empresas industriais apontam a alta carga tributária como fator de maior impacto para o elevado preço da conta de energia no Brasil. O estudo levou em conta entrevistas com 1.002 executivos líderes de indústrias de pequeno, médio e grande portes.
Os dados revelam que 56% das indústrias ainda compram energia exclusivamente no mercado cativo – aquele em que as distribuidoras revendem a energia comprada para o mercado de consumidores que estão na sua região de atuação. Questionados sobre a intenção de migrar para o mercado livre, 33% das indústrias dizem querer aderir à modalidade, 21% afirmam que talvez possam migrar e 42% informam que não pretendem fazer esse movimento. O índice, no entanto, aumenta para 48% se levado em conta só médias e grandes indústrias.
Mas o mercado será verdadeiramente revolucionado quando o Grupo B, a residência e a micro e pequena empresa, entraram no jogo. Serão mais 90 milhões de clientes potenciais. No mundo, 35 países já têm mercado livre de energia acessível a todos os consumidores. Alexandre Ramos, da CCEE, diz que a câmara tem investido em tecnologias, processos e pessoas e estará pronta para a abertura total do mercado livre de energia. “Isso vai ser a realidade para todos os cidadãos brasileiros”, afirmou Alexandre Ramos.
COMO ENTRAR NO MERCADO LIVRE
Para que um consumidor cativo possa se tornar livre, ele precisa estar registrado no Grupo A, onde estão agrupados todos os consumidores de energia em média e alta tensão, válido apenas para pessoa jurídica. No processo de migração do mercado cativo para o livre, há algumas etapas específicas que precisam ser cumpridas. O consumidor precisa informar para a distribuidora que decidiu migrar para o mercado livre e isso deve ser feito em um prazo de, no mínimo, seis meses antes do término de seu contrato de fornecimento com ela.
Contratos novos ou renovados em 2024 passam a ter prazo de fornecimento contínuo, e não mais de 12 meses. Isso é relevante porque basta ao consumidor informar a distribuidora o desejo de migrar ao mercado livre, o que acontecerá em até seis meses, após cumprir algumas etapas, com o auxílio de comercializadoras. Como o cumprimento das etapas de migração envolve termos, processos e conceitos específicos relacionados ao setor elétrico, é prudente ter a orientação de uma comercializadora para auxiliar no processo. No site da Abraceel é possível encontrar uma comercializadora.
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