Casa Tody: primeira loja da Rua Augusta completa 70 anos
Especializada em sapatos infantis de couro, ela mantém a mesma decoração desde 1953 e viu inúmeras transformações acontecerem na região
A Rua Augusta já passou por muitas transformações nas últimas décadas: teve bonde, ônibus elétrico, cinemas mais cobiçados da cidade, clubes, lanchonetes lotadas de “playboys” e paralelepípedos no chão. Já viu muita degradação e até prostituição, mas se revitalizou. No entanto, uma coisa não mudou, a Casa Tody. Há 70 anos, completados em agosto deste ano, a loja mantém as tradições desde que foi inaugurada.
Estamos falando da primeira loja de grande porte da Rua Augusta. A Casa Tody vende, até hoje, sapatos infantis de couro clássicos e se tornou uma referência no Brasil no segmento de calçados para festas, batizados e para uniformes de escolas tradicionais.
O incrível é que a Casa Tody nasceu quando a Rua Augusta mal tinha comércio e sobreviveu a tantas mudanças. Conseguiu manter a mesma fachada, com vitrines laterais, as mesmas paredes com armários de madeira até o teto repletos de caixas de sapatos empilhadas, o chão de carpete verde, a escada em caracol no centro e o cheiro de couro. Está tudo lá, desde 1953, mas nem precisa mudar, porque faz parte do charme do local.
Uma diferença agora é que vendem pelo Whatsapp, principalmente para quem mora fora de São Paulo, mas não tem e-commerce. E nem vai ter. E, para falar a verdade, até perderia a graça se tivesse. O estilo vintage está todo lá.
Outra das pouquíssimas mudanças foi que, até pouco tempo atrás, os vendedores ainda usavam camisa e gravata. Hoje, os funcionários usam uma polo azul com o logo da Casa Tody.
A loja já passou por três gerações. É comum ver no local uma mãe comprando para os filhos e revelando que frequentava o local com seus pais quando era criança.
O COMEÇO DE TUDO
Os húngaros sobreviventes do Holocausto, Miklos Frank e Elisabeth Frank, chegaram ao Brasil em 1949 junto com o único filho, André Frank, que na época tinha 32 anos, a nora Marianna e a neta Katy Borger.
Antes, em 1947, Elizabeth já tinha vindo a São Paulo visitar a irmã e se encantou com o lugar. Para fugir das atrocidades da Segunda Guerra Mundial, a família decidiu se mudar definitivamente e deu início a um negócio de vinhos, dando continuidade ao que faziam na Hungria, mas acabou não dando certo.
Em 1953, eles resolveram mudar de ramo e inauguraram a Casa Tody com toda a família trabalhando: Elizabeth e Marianna cuidavam da loja e do caixa, enquanto Miklos e André ficavam no andar de cima fazendo a gestão do estoque. Katy praticamente cresceu dentro da loja.
André faleceu em 2013 com 92 anos e trabalhou até o dia anterior à sua morte na Casa Tody, já de cadeira de rodas. Ele era tão conhecido na região, após 50 anos trabalhando no local, que quis fazer sua festa de 90 anos dentro da loja, com inúmeros convidados de lojas vizinhas.
Foi ele quem criou uma das relíquias e marca registrada da loja: uma régua de madeira para medir o tamanho do pé das crianças. Até hoje ela está lá, para quem quiser usar.
Atualmente, a loja é administrada pela nora de André, Vanessa Hermann, que é sócia de Katy Borger, sua sogra, hoje com 76 anos. Apesar de ainda estar na sociedade, dona Katy não fica mais na loja diariamente, mas sempre se informa sobre o andamento do negócio.
“A maior parte da vida da Casa Tody foi gerida pelo meu sogro e pude trabalhar com ele durante cinco anos antes dele falecer”, conta Vanessa.
“Ele era conservador, nunca quis vender sapatos da moda, já que sua especialidade era o sapato de couro. No passado, os colégios exigiam esse tipo de calçado e todo mundo vinha comprar aqui. Atualmente, a maior procura é para festas e batizados”, conta.
A Casa Tody viu o comércio crescer exponencialmente na Rua Augusta. Nos anos 60, a rua foi um grande ponto de diversão e nos anos 70, houve um grande crescimento urbano com o surgimento de várias galerias e centros comerciais.
Uma das histórias revela que, em 1973, os comerciantes queriam dar um ar chique para o comércio da Rua Augusta e resolveram instalar carpetes, como é o caso da própria Casa Tody, com seu carpete verde por todo o espaço. A iniciativa foi um desastre porque, na primeira chuva forte, pedaços de carpetes das lojas desceram ladeira abaixo por dias na Rua Augusta.
DIVERSIFICADO, MAS NEM TANTO
Além dos modelos de sapatos de amarração para meninos, boneca para as meninas, calçados colegiais e outros clássicos infantis encontrados na loja, a Casa Tody também vende tênis All Star, da Converse.
“Somos uma das lojas da cidade que mais vende Converse em São Paulo porque consigo manter um estoque muito grande para pronta-entrega. Muitas empresas vêm aqui comprar para compor uniformes dos funcionários e levam até dúzias, todos iguais, e tenho essa disponibilidade para vender, até o número 44, de vários modelos e cores. É um tênis dos anos 70 super atual”, conta Vanessa.
O estilo vintage do All Star, criado em 1971 nos Estados Unidos, ainda faz muito sucesso entre os jovens.
“Já tentamos vender sapatos comuns para crianças no passado, de marcas variadas, mas não é nosso forte. Apesar de termos numerações para adultos, os calçados infantis representam 70% do nosso faturamento, incluindo os tênis da Converse”, diz Vanessa.
PÚBLICO
São poucas as lojas especializadas no Brasil em sapatos de couro infantil. Por isso, a demanda de outros Estados é grande, explica a sócia. “Temos uma procura bem considerável do pessoal do Nordeste. Os clientes nos chamam pelo Whatsapp, o vendedor pega o tamanho do pé em centímetros e enviamos o produto pelos Correios diretamente do nosso estoque.”
Vanessa revela ainda que já pensou em fazer uma loja virtual mas, após conversar com especialistas de mercado, chegou à conclusão de que não daria muito certo e o investimento seria bem alto para pouco retorno. Também não há filiais. Todo o negócio é concentrado na Rua Augusta.
A explicação é plausível: “É um tipo de sapato que a pessoa quer vir à loja provar porque vai ser usado em uma ocasião especial. Também há aqueles que querem visitar a Casa Tody, que é praticamente um ponto turístico de São Paulo. O presencial é nossa maior fatia de vendas, com exceção de quem compra de fora da cidade”, destaca a empresária.
A maior parte do público é de classes A e B. Além das festas, a Casa Tody tem uma demanda grande ainda por alunos de escolas bilíngues e tradicionais de São Paulo, cujo uniforme ainda mantém o sapato de couro.
E até onde vai a fama da Casa Tody? “Muita gente conhecida já passou por aqui. Já tivemos uma pessoa famosa que comprou um sapatinho para a filha ir ao casamento da princesa Charlene de Mônaco, em 2011. Como somos referência e quase não temos concorrentes, isso acaba acontecendo sempre”, conta Vanessa.
PANDEMIA
Os produtos vendidos na Casa Tody não são de produção própria, mas a loja tem dois fornecedores que fabricam esses calçados, com exceção obviamente dos tênis All Stars. Alguns modelos levam o nome da loja na palmilha. “Um desses fabricantes até criou a fábrica na mesma época que inauguramos aqui. Os donos eram amigos dos meus sogros, saíam juntos para jantar.”
Com um espaço próprio de 300 metros quadrados, a Casa Tody conseguiu sobreviver à pandemia da Covid-19. “Chegamos a uma fase em que ficamos dois meses inteiros com zero faturamento. Os funcionários recebiam salários do governo e não foram demitidos. Como não pagamos aluguel, deu para segurar as pontas, mas não foi fácil”, lembra Vanessa.
Ela conta que o ritmo de vendas ainda não voltou ao que era antes da pandemia, mas já melhorou bastante.
Quem for à Casa Tody será recebido com a mesma hospitalidade de 70 anos atrás e poderá ver as mesmas estantes de caixas com todo o legado deixado pelo sr André e seus pais. Até a embalagem para presente é vintage, parece um papel dos anos 50. É só entrar e curtir uma viagem ao passado no ano de 2023.
IMAGENS: Cibele Gandolpho/DC e arquivo Casa Tody