Bem-vindo ao Grajaú: bairro mais populoso e empreendedor do Brasil
O bairro tem 385 mil habitantes e redes próprias de varejo, como a calçadista Di Gaspi, que nasceu em 1989 e hoje possui 11 unidades locais
É um bairro. Mas não seria exagero chamá-lo de cidade. Só falta a prefeitura. Afinal, o bairro paulistano do Grajaú é maior do que muitos municípios do Brasil. Para ser mais exato, com seus 385 mil habitantes – dados do IBGE, no Censo 2022 –, o Grajaú é mais populoso do que 98% das cidades do país. Apenas 130 municípios brasileiros possuem mais moradores do que esse bairro paulistano. Traduzindo os números, pode-se afirmar que o Grajaú é mais populoso do que 5.440 cidades do Brasil. O bairro tem mais moradores, por exemplo, do que Rio Branco, a capital do Acre (360 mil), Vitória, capital do Espírito Santo (370 mil), e Caruaru, em Pernambuco e uma das maiores cidades do interior do Nordeste (380 mil). No exterior, muitas cidades famosas também ficam atrás do Grajaú em relação à quantidade de habitantes, como San José, capital da Costa Rica (330 mil moradores), e Florença, na Itália (380 mil).
Além de ter esse mundaréu de gente – ou até por causa disso –, o Grajaú detém outro recorde: é o bairro mais empreendedor do Brasil. Segundo o Mapa da Desigualdade, lançado anualmente desde 2012 e elaborado pela Rede Nossa São Paulo, quase 3% dos Microempreendedores Individuais (MEIs) da capital paulista ficam no bairro mais populoso do país. Mariana Rosa personaliza esses dados com perfeição. Aos 28 anos, ela é dona do Boom Box, salão de beleza direcionado a pessoas negras. Em funcionamento desde 2017, o local atende, em média, a 12 clientes por semana e rende cerca de R$ 2,5 mil a Mariana mensalmente. “É mais do que eu recebia no meu emprego anterior”, disse ela, que trabalhava como educadora social numa ONG.
Mineira de Conselheiro Lafaiete, Mariana mora em São Paulo há quase dez anos e se diz feliz com a vida atual. Mas percebe as dificuldades de trabalho para quem mora no Grajaú. “Na periferia, a quantidade de empregos formais é muito baixa. Daí, muitas vezes, empreender é a única alternativa”, afirmou. “O pessoal que mora aqui abre o negócio próprio muito mais por necessidade do que por opção.” A história de Mariana confirma pesquisa da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Trabalho (SMDET), segundo a qual há um movimento de trabalhadores que atuavam em projetos sociais e que estão migrando para negócios de outros setores, como moda e gastronomia. É justamente no universo gastronômico que o Grajaú se destaca com outro recorde: esse bairro com jeitão de cidade tem a maior quantidade de bares e restaurantes de São Paulo.
De acordo com relatório da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), divulgado no início deste ano, a capital paulista possui pouco mais de 156 mil bares, restaurantes e similares em funcionamento. Desse total, quase 2,7 mil (cerca de 1,7%) estão no Grajaú. Em proporção à população, é um número baixo, já que a região concentra 3,4% da população da cidade (11,4 milhões de habitantes). Mas em números absolutos supera os estabelecimentos presentes em bairros mais badalados de São Paulo, o Grajaú leva larga vantagem. O Itaim Bibi, líder na região considerada pólo gastronômico pela Abrasel, tem 1.980 bares e restaurantes, seguido pelo Tatuapé (1.130) e por Pinheiros (1.110). A folga do Grajaú em relação aos demais bairros paulistanos é tamanha que a soma de todos os bares e restaurantes do segundo e terceiro colocados, Tatuapé e de Pinheiros (que daria 2.240), não alcança os números do líder.
VAREJO
Para atender a toda essa população, empresas dos mais diversos setores mantêm operações no distrito. O coração comercial do lugar é a avenida Dona Belmira Marin, que serpenteia o bairro de norte a sul e na qual encontram-se quase 500 estabelecimentos. Ali, grandes marcas, como Casas Bahia, Extra, Magazine Luiza e McDonald’s, dividem espaço com pequenos imóveis, nos quais funcionam oficinas mecânicas, lanchonetes, cursos de inglês, mercearias, farmácias, concessionárias de veículos, cabeleireiros. Os grandes bancos também estão presentes. Na avenida, há agências do Banco do Brasil, Bradesco, Itaú e Santander. No meio de tudo isso, há muitas barracas armadas nas calçadas, nas quais são vendidos todos os tipos de produtos: roupas, calçados, relógios, chapéus, brinquedos, maquiagem, óculos. E gente para todo lado. Afinal, trata-se do bairro mais populoso do país.
Nesse caleidoscópio humano e comercial, há algo que só poderia existir num distrito com população de proporções municipais. O Grajaú tem redes de varejo nascidas no local, de segmentos variados e direcionadas ao público do bairro. Uma espécie de economia autóctone. Exemplo perfeito é a Di Gaspi, loja de calçados, moda masculina, feminina e infantil. Fundada em 1989 por imigrantes italianos da família De Gaspari – daí o nome da empresa –, a loja nasceu, segundo a própria marca, “com o objetivo de criar um novo conceito no varejo, por meio de uma relação custo-benefício entre preço, produto e atendimento de qualidade”. Hoje, 35 anos depois, a Di Gaspi tem 11 unidades apenas no Grajaú, além de filiais em outras cidades de São Paulo, e já conquistou prêmios importantes, como o Marketing Best (em 2011 e 2013) e o Top of Quality (2011 e 2014). “Nossos vendedores conhecem muitos clientes pelo nome. Temos uma relação de confiança, respeito e até de carinho com nosso público”, afirmou Antônio Queiroz, gerente de uma das unidades do Grajaú. “Esse tipo de relacionamento só existe porque somos uma marca essencialmente de bairro.”
História semelhante é contada pelos executivos da loja de materiais de construção Franzana, fundada em 1993 e que tem cerca de 50 funcionários. Com três unidades no bairro, só existe no Grajaú e segue crescendo, com sua mais nova filial inaugurada há seis meses, na avenida Dona Belmira Marin. Gerente dessa loja, João Souza acredita que ser uma empresa local e bastante conhecida dos moradores do bairro ajuda nos negócios. “Temos clientes que compram nossos produtos há 30 anos e outros que acabaram de chegar”, disse Souza. “O fato de estarmos dentro do bairro torna o acesso mais fácil aos moradores daqui, que não precisam se descolar para outras regiões da cidade.”
Há, ainda, a rede de supermercados Ricoy, que possui 12 unidades no Grajaú. Fundada no início dos anos 1970, a empresa nasceu com dois mercados: o Rivera e o Yokoi. Em 2000, o grupo uniu as duas marcas, criando a Associação Ricoy, que hoje controla várias firmas, como Amais, Economax, Pão de Mel e Rei do Gado. Atualmente, a rede possui 43 lojas, incluindo as 12 unidades do supermercado Ricoy no Grajaú. Só no bairro, a empresa tem cerca de 250 funcionários, sendo que quase 90% deles moram na região. Esse é outro ponto interessante nas empresas de varejo do Grajaú. Todas priorizam os habitantes do bairro na hora de contratar suas equipes. Antônio Queiroz, gerente da Di Gaspi, diz que o fato de o bairro estar distante de regiões mais centrais leva à preferência por funcionários que morem perto. “Além disso, há o fato de darmos trabalho aos moradores do Grajaú, cumprindo uma importante função social da nossa empresa.”
EMPREGO
Mesmo assim, falta emprego aos habitantes do bairro mais populoso do Brasil. Estudo da ONG Periferia em Movimento, realizado em 2022, aponta que o Grajaú tem uma das piores taxas de emprego formal da capital paulista. Enquanto na Barra Funda, na região central da cidade e líder nesse ranking, a oferta de trabalho com carteira assinada é de 67 vagas para cada 10 habitantes, no Grajaú esse número é de 0,4 vaga para cada dez moradores. A tradução dos dados indica que um número 150 vezes maior de pessoas precisa se deslocar diariamente do Grajaú para conseguir trabalhar num emprego formal do que na Barra Funda. E isso leva a outro problema enfrentado pelos habitantes do bairro. O tempo de deslocamento de casa ao local de trabalho é muito maior para quem vive nas periferias.
No horário de pico da manhã, o tempo médio gasto no transporte público por um morador do Grajaú é de 64 minutos por dia, enquanto quem vive em Pinheiros, na Zona Oeste da cidade, é de 25 minutos – a média paulistana é de 42 minutos. Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva, cuja especialidade é produzir e analisar dados estatísticos com uma visão humanizada, traduz o quanto isso se torna um amplificador de desigualdades. “A soma desses dois fatores – baixa oferta de emprego formal e alto tempo gasto para chegar ao trabalho – faz com que muitos moradores do bairro vejam no negócio próprio a oportunidade de ter uma fonte de renda”, disse. “É compreensível, portanto, que um bairro como o Grajaú tenha tantos empreendedores.”
Para Meirelles, o Grajaú é a concentração geográfica da desigualdade paulistana. Sobre o alto índice de empreendedorismo observado no bairro, ele destaca que existe um ponto positivo. “Muitas vezes, o empreendedorismo compensa de certa forma a falta de trabalho formal e consegue prover a população de uma renda que dificilmente as pessoas conseguiriam num emprego com carteira assinada”, disse. “Esse empreendedorismo é fruto de uma desigualdade, mas que aparece como algo que ajuda a combater a própria desigualdade.”
IMIGRANTES
O Grajaú é tão populoso, que enfrenta até um problema típico das grandes metrópoles: a imigração. No bairro, há duas grandes comunidades estrangeiras: venezuelanos e haitianos. Não há dados oficiais, mas líderes comunitários estimam que há mais de 2 mil pessoas desses dois países vivendo no Grajaú, das quais cerca de 1,5 mil são da Venezuela. São pessoas que enfrentam os mesmos problemas que qualquer morador, como a falta de emprego. Como na região não há indústrias ou grandes polos empregadores, o varejo – formal ou informal – acaba surgindo como única opção de trabalho.
A venezuelana Mica Luís, 43 anos, é o retrato perfeito desse cenário. Mica mora no Grajaú desde 2016, ano em que chegou ao Brasil. Vive na vila Jardim Guaembu 3 (JG3), onde há uma grande comunidade venezuelana e, segundo afirmam pessoas locais, é controlada pelo PCC. Ela saiu da Venezuela fugindo da crise econômica que abala o país, mas sabia que as coisas em São Paulo não seriam fáceis. “Eu já tinha amigos morando aqui (no Grajaú), que me incentivaram a vir para cá, mesmo me alertando que eu encontraria dificuldades para arrumar emprego”, disse. Ela não arrumou. Sem conseguir trabalho, montou uma banca de roupas num ponto privilegiado da avenida Dona Belmira Marin: a calçada do Itaú, o maior banco do país, com lucro de R$ 35,6 bilhões no ano passado. Vivendo com dois filhos adolescentes (outros dois, já adultos, ficaram na Venezuela) numa casa de madeira, de 30m², ela fatura cerca de R$ 1,5 mil por mês com sua banca e acredita ter tomado a decisão correta ao deixar seu país. “Aqui, apesar das dificuldades, eu e meus filhos temos uma vida, comida, casa. Na Venezuela, estaríamos em condições muito piores.” Algo que só é possível pela dinâmica econômica própria criada pelos 385 mil habitantes do bairro mais populoso do Brasil.
IMAGEM: Klester Cavalcanti/DC News