Por que é desejável pagar mais caro por livros em lojas de rua?

As externalidades positivas e um passeio pelas livrarias de rua de São Paulo

Vitor França
11/Abr/2023
Economista pela FEA-USP e mestre em economia pela FGV-SP
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Por que é desejável pagar mais caro por livros em lojas de rua?

Foi em uma estante da já saudosa Livraria Cultura do Conjunto Nacional que, certo dia, me chamou atenção a capa do romance “Assim começa o mal”, do recentemente falecido espanhol Javier Marias.

Subvertendo a máxima de que não se deve julgar (nem comprar) um livro pela capa, somente pela bela edição, com a reprodução da pintura da Tamara de Lempicka, já valeria à pena ter levado o romance para casa.

Muito mais do que uma bela capa, porém, aquela obra sobre memória, esquecimento, silêncio, perdão, rancor e vingança foi a primeira que li do autor, de quem acabei lendo e relendo tudo o que já foi traduzido para o português e que se tornou, definitivamente, um dos meus escritores favoritos.

Na época eu morava na Cardoso de Almeida, em Perdizes. Pouco tempo depois de ter acabado o “Assim começo o mal”, em uma tarde à toa de sábado dei um pulo na Livraria Zaccara, que, coincidentemente, havia selecionado o livro para seu clube de leitura mensal.

Tive a oportunidade, então, de dividir minhas impressões em uma conversa deliciosa com o Lúcio Zaccara e sua esposa, Cris, e saí de lá com os excelentes “Os enamoramentos” e “Amanhã, na batalha, pensa em mim”, do mesmo autor, e “Amor”, da norte-americana Toni Morrison, este último recomendação da Cris. Tal qual na obra do Javier Marias, também ali havia um mosaico de lembranças, ódios e paixões do qual eu poderia gostar, foi mais o menos que ela deve ter dito, se não me falha a memória.

Tempo depois, na Martins Fontes da Paulista, comentei com um vendedor meu encanto pelas grandes cidades e meu deslumbramento com os romances do Javier Marias. Ele me recomendou “O cantor de tango”, uma busca pelos labirintos de uma misteriosa e surpreendente Buenos Aires imaginada pelo argentino Tomás Eloy Martínez, que viria a se tornar um dos meus romances latino-americanos preferidos.

Tudo isto para ilustrar que, só pela espontaneidade da descoberta de um autor, pela possibilidade de trocar impressões a respeito de uma obra, pela prazerosa sensação de se perceber compreendido por outra pessoa – e não pela frieza de um algoritmo –; enfim, só pelas histórias que envolvem a compra de um livro já estaria mais do que justificado o preço mais alto que pagamos nas lojas físicas em comparação ao comércio eletrônico.

As livrarias de rua, contudo, são muito mais do que vendedoras ou criadoras de histórias: elas provocam também um efeito extremamente positivo na cidade. Isto porque livrarias são espaços de convivência, de permanência, de encontros, que trazem movimento para o bairro e para as calçadas; especialmente para quem gosta de literatura, como eu, são verdadeiros refúgios ante o barulho e a fúria do nosso tempo.

Há um conceito em economia que aborda estes impactos das livrarias de rua na cidade: são as externalidades positivas. Trata-se de efeitos colaterais positivos de uma decisão sobre aqueles que não participaram dela. Existe externalidade positiva quando um terceiro, que não foi diretamente levado em consideração por quem toma a decisão, é positivamente afetado. Um dos exemplos mais citados nos livros de economia são belos jardins visíveis da rua.

No caso das livrarias, independentemente de se comprar ou não um livro, é possível passar um tempo ali, encontrar alguém, ouvir música, ler, ver gente ou simplesmente folhear páginas e páginas sem pagar qualquer coisa por isto; além disto, elas ainda podem atrair visitantes para o bairro e dar mais vida à região. Pagar de alguma forma por isto é uma maneira de incentivar que estes benefícios continuem sendo oferecidos.

A lógica econômica mais tosca, contudo, nos educou a perseguir sempre os preços mais baixos, que, somados à pressa contemporânea e à busca por comodidade, tornaram-se os principais atrativos das grandes plataformas de comércio eletrônico.

Com isto, muitas vezes acabamos por ignorar as externalidades positivas das livrarias de rua em nossas decisões de consumo. Sem perceber, corremos o risco de trocar lojas que dão identidade e vida aos bairros por enormes galpões logísticos, empregos precários e lucros para poucos grandes empresários.

Sei que, diante do atual cenário econômico e da inflação ainda elevada, parece até heresia tentar justificar ou defender preços mais altos. Livros, contudo, são bens relativamente baratos e, por mais voraz que você seja como leitor, dificilmente o gasto a mais nas lojas físicas irá comprometer seu orçamento.

Dia destes, por exemplo, eu até poderia ter comprado o “Diorama”, último romance da gaúcha Carol Bensimon – para mim, a melhor escritora brasileira da minha geração –, por menos de 40 reais na Amazon, mas preferi pagar quase 60 reais na Livraria da Travessa, que me oferece, em frente à loja, um charmoso deck de madeira, um agradável espaço para me sentar, ler ou apenas observar o agitado movimento da Rua dos Pinheiros.

Verdade, 20 reais não é um valor desprezível (ainda paga um bom prato feito em alguns lugares, afinal!). Contudo, nem sempre a diferença de preço entre o comércio físico e eletrônico é tão grande (considerando os oito livros citados neste artigo ainda disponíveis nas livrarias, a diferença média foi de 20,82 reais por livro, sendo 7,29 reais a menor e 31,01 reais a maior diferença)

Ainda que a diferença seja considerada elevada, vá lá, convenhamos: costumamos gastar 20 reais ou mais, sem parar muito para pensar, em coisas deprimentes que estragam a cidade como duas horas de estacionamento ou três litros de gasolina. 

Um pequeno parêntese. A ideia para este artigo surgiu a caminho de uma livraria, em uma caminhada do frenesi da Avenida Paulista até a pacata Rua Rocha, na Bela Vista. Após visitar a exposição “Cidades Líquidas”, no Centro Cultural Fiesp (grátis, em cartaz até 23 de abril), resolvi seguir pela Alameda Rio Claro, Rua Pamplona e Itapeva.

À medida que descia pelo bairro, os grandes edifícios próximos à Paulista davam pouco a pouco lugar a predinhos e casinhas construídos provavelmente na primeira metade do século passado. No meio do caminho, o megacomplexo de luxo Cidade Matarazzo (bem como seu vizinho Praça Pamplona) representava incrivelmente uma rara transição bem-sucedida entre o passado e o presente de São Paulo – o passado, infelizmente, quase sempre é apagado por novas construções sem graça ou qualquer harmonia entre si, como a grande maioria das observadas no entorno.

Ali, em meio a muito verde, prédios históricos como as restauradas Maternidade Condessa Filomena Matarazzo (de 1943) e Capela Santa Luzia (de 1922) convivem com a Torre Mata Atlântica, concebida pelo renomado arquiteto francês Jean Nouvel e onde foi instalado o Rosewood São Paulo, um dos hotéis mais luxuosos do país.

Era a prova de que é possível renovar a cidade sem destruir completamente seu patrimônio, de que os grandes investimentos privados podem levar em consideração a cidade e o interesse público e, ainda assim – ou talvez até por isto – gerar bons resultados para os investidores.

Não apenas altos investimentos, mas também pequenos investimentos podem preservar e transformar a cidade, também me dei conta. Em uma das charmosas casinhas sobreviventes da Rua Rocha, mais precisamente a azul no número 259, entre estantes cheias de livros, quadros, música boa rolando, fui recebido pelo Felipe Beirigo, um dos donos da Livraria Simples, que me ofereceu um ótimo café, servido em um copo americano. Que satisfação era ter chegado ali.

Pelo mundo, livrarias de rua são referência para quem gosta de livros e cidades. A Shakespeare and Company, um dos primeiros lugares que fiz questão de visitar em Paris, já habitava meu imaginário pelo menos desde o reencontro de Jesse e Celine em “Antes do Pôr do Sol”. A El Ateneo Grand Splendid, em Buenos Aires, sempre figura nas listas das livrarias mais bonitas do mundo e dos lugares mais interessantes para se visitar na capital portenha. Perder-me pelas vielas de Veneza e, de repente, me encontrar em frente à Livraria Acqua Alta foi uma experiência surpreendente e gratificante.

A despeito da triste derrocada da Livraria Cultura (por muito tempo a do Conjunto Nacional foi a mais incrível livraria de rua de São Paulo), novas livrarias de rua, felizmente, estão surgindo. A mais charmosa, provavelmente, é a Megafauna, aberta em plena pandemia no térreo do Copan e parada obrigatória para quem visita um dos edifícios mais icônicos da cidade.

Perto de casa, na Vila Romana, em frente ao Teatro Cacilda Becker, abriu as portas em 2022 a Livraria Cabeceira, cujo principal diferencial talvez seja a organização dos livros a partir das suas semelhanças e não por ordem alfabética dos autores ou país de origem, como na maioria das livrarias.

Para quem gosta de cidades como eu, por exemplos, entre os essenciais “Morte e vida de grandes cidades”, da Jane Jacobs, e “São Paulo: o planejamento da desigualdade”, da Raquel Rolnik, pode ser que encontre “Eles eram muitos cavalos”, do Luiz Ruffato, um retrato lírico e singular da vida na capital paulista, o “Guia Fantástico de São Paulo”, da espanhola Ángela León, ou mesmo “O cantor de tango”, que já comentei.

Outra livraria que está na minha lista, mas ainda não tive tempo de visitar, é o Sebo Pura Poesia, no Ipiranga. Além de parecer extremamente charmoso, li que ele comercializa alimentos de produtores da região e obras de artistas locais, criando, com isto, forte vínculo e identidade com a população do bairro. Pelo que ouvi, a livraria é um tremendo sucesso e, inclusive, já entrou no roteiro de quem vai ao Ipiranga visitar o Museu. Em breve farei minha visita!

É claro que, eventualmente, também compro livros pela internet. Tenho privilegiado, porém, os sites das livrarias que têm lojas de rua. Já quando consigo escapar da rotina e me refugiar em uma delas, dificilmente saio de lá sem um romance nas mãos.

Acredito, afinal, que não apenas os grandes investimentos – como os da Cidade Matarazzo –, mas também as pequenas decisões de consumo podem ajudar a preservar e transformar a cidade. Se o orçamento apertar, vou continuar preferindo pagar um pouco mais pelos livros e economizar, se for preciso, nos estacionamentos ou na gasolina.

A São Paulo que eu sonho é uma cidade onde passado e presente podem conviver harmoniosamente, onde renovação e preservação não são objetivos antagônicos, mas complementares; é também uma cidade menos violenta e desigual, com menos carros, menos condomínios murados, menos shopping centers, com mais pessoas nas calçadas, mais espaços públicos de qualidade; e mais livrarias de rua, é claro.

Para conhecer as livrarias citadas:

- Livraria Zaccara

Rua Cardoso de Almeida, 1356 – Perdizes

- Livraria Martins Fontes Paulista

Avenida Paulista, 509 - Bela Vista

- Livraria Simples

Rua Rocha, 259 - Bela Vista

- Livraria da Travessa – Pinheiros

Rua dos Pinheiros, 513 – Pinheiros

- Livraria Megafauna

Av. Ipiranga, 200 – Loja 53 – Centro Histórico de São Paulo

- Livraria Cabeceira

Rua Tito, 38 – Vila Romana

- Sebo Pura Poesia

Rua Costa Aguiar, 1112 – Ipiranga

 

IMAGEM: Paulo Pampolin/DC

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