Lei responsabiliza também o varejista pelo endividamento do cliente
Legislação que insere no Código de Defesa do Consumidor regras para prevenção e tratamento do superendividamento prevê multa para quem omite informações sobre operações de crédito
Crédito e prazo de pagamento. Essa dupla tem sido uma das principais ferramentas do comércio para vender diante do elevado endividamento das famílias brasileiras.
Tradicionalmente, a venda financiada sempre foi uma das características de varejistas especializados em bens mais caros, como lavadoras, fogões, geladeiras, televisores e carros.
Hoje, o consumidor nem precisa bater muita perna para encontrar redes de supermercados dispostas a parcelar até a compra de alimentos e produtos de higiene e limpeza.
A compra parcelada cresceu a tal ponto no país que quase 77% das famílias têm algum tipo de dívida, de acordo com levantamento da Confederação Nacional do Comércio (CNC).
Outro dado nada favorável ao consumo: a cada 100 famílias, cerca de 30 não estão conseguindo pagar as contas em dia, isto é, estão inadimplentes.
A Lei 14.181, de 2021, que insere no Código de Defesa do Consumidor um capítulo sobre prevenção e tratamento do superendividamento, faz um alerta para consumidores e lojistas.
A saúde financeira não é apenas responsabilidade do cliente, mas também de quem fornece o crédito, considerando o impacto que a inadimplência pode ter em uma cadeia produtiva.
“Se os órgãos de defesa do consumidor constatam a concessão de crédito de maneira irresponsável, as empresas podem sofrer multa administrativa que pode ultrapassar R$ 13 milhões”, afirma Maria Helena Bragaglia, sócia do Demarest Advogados.
Mesmo antes da lei de 2021, chamada de Lei do Superendividamento, já era obrigação das empresas esclarecer os consumidores sobre as condições do crédito concedido.
“A nova lei reforça e complementa o que já era uma exigência no Código de Defesa do Consumidor (CDC)”, afirma Robson Campos, diretor de Assuntos Jurídicos do Procon-SP.
Preço do produto com e sem financiamento, número de prestações, taxa anual de juros, acréscimos previstos em caso de atrasos no pagamento são algumas das informações que os clientes precisam ter claramente antes da liberação do crédito.
“É necessário o comprometimento, o engajamento dos varejistas em relação a este tema, com grande impacto na sociedade e na economia do país” afirma Campos.
Além de dar informações sobre custos e todas as implicações que envolvem um financiamento, diz Maria Helena, os credores devem realizar consultas a empresas de proteção de crédito.
“A lei veda práticas que indiquem a possibilidade de operação de crédito sem consulta a serviços de proteção ao crédito ou sem avaliação da situação financeira do consumidor”, diz.
A legislação também proíbe a prática de ocultar a compreensão de informações sobre ônus e riscos da operação e de assédio ou pressão para que o cliente obtenha o crédito.
Para evitar que o consumidor se torne insolvente, a Lei do Superendividamento também possibilita um procedimento pré-judicial de conciliação para a renegociação de dívida.
Caso o credor, no caso um lojista, recuse o acordo com o cliente, a legislação estabelece penalidades, como a suspensão do débito e a interrupção dos encargos.
Se o consumidor decide recorrer à Justiça, diz Maria Helena, o juiz terá poderes para analisar e revisar a relação entre o credor e o cliente.
“Se for necessário garantir o mínimo existencial do devedor, os encargos da dívida podem ser afastados integralmente, mantida apenas a repactuação do principal”, afirma.
NÚCLEO
Há mais de dez anos o Procon-SP possui um núcleo para tratamento de superendividamento de consumidores e, de acordo com Campos, há casos, sim, de incapacidade de pagamento, decorrente da ausência de informações prévias no ato da concessão do financiamento.
“Pela experiência do Procon, a falta de informação é um dos principais motivos que levam os consumidores a se endividar com despesas obrigatórias acima de sua capacidade financeira.”
O engajamento do varejista no processo de prevenção e conscientização dos riscos de obter um financiamento pode evitar, diz ele, problemas financeiros para o seu próprio negócio.
“É um dever de todos os fornecedores de crédito zelar pela concessão do crédito responsável”, afirma.
CAMPANHAS
Depois que a legislação entrou em vigor, diz, aumentaram as campanhas de renegociação de dívidas de vários setores, um indício de mobilização por causa da Lei 14.181 de 2021.
No início deste mês, o Itaú Unibanco lançou uma campanha de renegociação de dívidas de clientes com descontos de até 96% e possibilidade de parcelamento em até 73 vezes.
Outros bancos, como Santander e Bradesco, também possibilitam acordos para zerar dívidas, assim como o programa Desenrola Brasil do governo federal, que vai até o final de março.
No programa Desenrola Brasil, o consumidor consegue renegociar dívidas de até R$ 20 mil. Para participar, é preciso fazer um cadastro na plataforma gov.br com dados atualizados.
Nelson Tranquez, conselheiro da Câmara dos Dirigentes Lojistas (CDL) do Bom Retiro, diz que a maioria dos lojistas da região, muito provavelmente, sequer sabe da existência dessa lei.
“A maioria das lojas não possui mecanismo de financiamento próprio, trabalha com empresas de cartão de crédito, que permitem parcelamento dependendo da negociação com os lojistas.”
Hélio Freddi Filho, diretor da rede Hirota, diz que as redes de supermercados não costumam dar crédito próprio para os clientes. Trabalham com cartões de crédito e débito.
“Quando decidimos fazer uma promoção com pagamento em até três vezes, por exemplo, o preço que vale é o da prateleira, não tem acréscimo”, diz.
Quem tem que prestar muita atenção na Lei do Superendividamento, dizem eles, são as lojas que possuem crediário próprio e vendem parcelado em 8, 10, 12 vezes.
Maria Helena diz que o cliente também precisa ter todas as informações sobre o uso de cartões, como os riscos atrelados, se não conseguir pagar as parcelas no dia do vencimento.
Se pagar uma parcela antecipadamente, diz ela, o cliente também tem o direito de obter um desconto proporcional.
“Se quer colocar crédito na rua, a empresa tem de assumir responsabilidades, tem de estar preparada, pois passa a ser responsável solidária no processo de oferta de crédito”, diz.
IMAGEM: Newton Santos/DC