As trapalhadas de Temer com a intervenção no Rio
Mau sinal: os "mandados coletivos de busca e apreensão" já foram engavetados, e o comandante do Exército, general Villas Bôas, sinaliza possibilidade de excessos dos militares

O presidente Michel Temer acredita que a intervenção das Forças Armadas na segurança pública do Rio de Janeiro o tirou do ostracismo em que ele caiu, em maio do ano passado, quando foi divulgada a comprometedora gravação de sua conversa com Joesley Batista.
No entanto, ao colocar os militares no tablado político, o presidente da República abriu flancos para trapalhadas que já estão comprometendo seu êxito pessoal.
A principal delas se refere aos mandados coletivos de busca e apreensão. Anunciados segunda-feira (19/02), eles permitiriam a caça aos traficantes, sem a indicação de um endereço específico.
Fazia sentido. Dentro das favelas, os traficantes não têm um único domicílio fixo, e a varredura necessária para a prisão dos criminosos e a apreensão de drogas e armas deveria, em tese, se expandir para um perímetro mais amplo.
A OAB imediatamente alertou para a ilegalidade da iniciativa, com o que concordou, embora informalmente, a Advocacia Geral da União.
Deram a mesma opinião os desembargadores do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e ministros do Supremo consultados verbalmente.
A solução foi, então, engavetar provisoriamente a iniciativa, o que provocou, na intervenção militar, o primeiro grande desgaste do Planalto.
Uma segunda trapalhada partiu do comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas.
PASSE LIVRE PARA A VIOLÊNCIA
Ele se manifestou – é verdade que a portas fechadas –na reunião do Conselho da República, que segunda-feira sancionou a intervenção no Rio.
Ele pediu para seus homens “garantias para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade”, referência ao grupo institucional criado pelo governo Dilma, para apurar as transgressões de direitos humanos durante o regime militar.
O assustador, na expressão desse desejo, está na obtenção de uma espécie de salvo-conduto para que soldados e oficiais cometam excessos, sem o temor de serem punidos.
Nas favelas em que estarão atuando há uma esmagadora predominância de pessoas honestas. Se elas passarem a ser confundidas com traficantes, é inevitável que inocentes acabem pagando o preço pelos culpados.
Temer ainda amarga objeções que não chegam da oposição de esquerda, mas de pessoas de sua máxima confiança, como Alexandre de Moraes, ex-ministro da Justiça e hoje ministro do STF.
Moraes afirmou nesta quarta (21/02) que “medidas emergenciais não vão resolver os problemas”, sem que se façam investimentos em inteligência e em equipamento e formação para as forças policiais, no médio e no longo prazo.
Sem isso, haveria apena suma “melhora momentânea”, disse ele.
Antes de ser convidado por Temer para o ministério, Moraes foi secretário de Segurança Pública do governador paulista Geraldo Alckmin. Ele sabe o que fala.
O fato é que o roteiro que Temer montou tem de tudo para dar certo, mas apenas em termos de opinião pública, cuja visão é imediatista e que vê no Exército o instrumento eficaz para “provocar medo nos bandidos”.
CONGRESSO FOI ATRÁS
Foi com base nessa percepção positiva que o Planalto obteve no Congresso duas vitórias de proporções inéditas nos últimos nove meses.
Na Câmara, a intervenção na segurança pública fluminense foi aprovada por 340 a 72, e no Senado, por 55 votos a 13.
No caso dos deputados, é sintomático que o PDT e o PSB, alinhados à esquerda, tenham votado integralmente com o governo, excetuado um único voto em cada bancada.
Sinal de que a iniciativa tem uma popularidade que Temer sonharia transportar para a reforma da Previdência, agora momentaneamente sepultada.
Com relação aos dois assuntos – Previdência e intervenção no Rio -, há uma relação de causa a efeito, mas com sinais trocados.
Não é verdade que o presidente tenha apelado aos militares porque a reforma estava empacada.
A versão correta é a de que o presidente chamou os militares para eclipsar o fato de ele, durante seu mandato, não ter sido incapaz de aprovar a Previdência.
A curto prazo o marketing está funcionando. Tanto que os marqueteiros do Planalto acreditam que, com o enfeite verde oliva, o presidente tende a superar parte de sua rejeição e até atingir o cacife necessário para se candidatar à própria sucessão.
A tese é irrealista. Mas os que a difundem têm segundas intenções: fazer de Temer um "player" nas eleições presidenciais de outubro.
RISCOS PARA OS PRÓPRIOS MILITARES
É um cenário por enquanto delirante, mesmo porque a intervenção militar não demonstrou ainda confrontos nos quais soldados podem sair desmoralizados ou até serem mortos.
Por enquanto, a intervenção está na zona de conforto, como no fato de militares terem se associado à PM fluminense para uma operação de varredura, nesta quarta-feira, na Penitenciária Milton Dias Moreira, em Japeri, na Baixada Fluminense.
Uma coisa é revistar presos desarmados. Outra é enfrentar traficantes nos becos da Rocinha, onde o conhecimento do Exército é no máximo cartográfico.
Os dois únicos militares mortos depois de anunciada a intervenção não tinham nada a ver com as operações do Exército.
Dois sargentos, Bruno Albuquerque Cazuza e Cristiano das Neves Souza, morreram em dois assaltos em Campo Grande e Bangu, bairros da zona oeste carioca.
Há, por fim, a analogia feita pelos adeptos incondicionais da intervenção com aquilo que aconteceu durante os 13 anos de presença do Exército brasileiro no Haiti.
Uma das tarefas dos militares em Port-au-Prince consistiu em pacificar Bel Air, a maior favela do país.
Mas qualquer analogia é incorreta, porque o Estado haitiano havia entrado em colapso, e a única autoridade estava em mãos de militares estrangeiros.
O interventor no Rio, general Walter Souza Braga Netto, não esteve naquele país caribenho, por mais que ele tenha, no ramo, uma experiência singular.
Ele foi o supervisor da segurança nos Jogos Olímpicos de 2016.
FOTO: Fernando Frazão/Agência Brasil