Só falta combinar com os russos
As decisões necessárias para o ajuste fiscal têm sido relativizadas pelos que desconhecem a gravidade da situação das contas públicas
Paira no ar um ensaio de revisão do programa de ajustamento do ministro Joaquim Levy. Não podendo dizer que são contra o ajuste, muitas vozes afirmam que o ajuste deveria ser “menos severo”.
De duas, uma: ou essas pessoas não têm ideia da situação em que está a economia do país, ou sabem e não se importam com o agravamento dos problemas.
Alguns números devem ser suficientes para esclarecer os mal informados. As contas fiscais vêm de há algum tempo em processo contínuo de deterioração. O ponto culminante se deu no ano passado. Em 2014, o saldo primário alcançou um déficit R$ 32,5 bilhões (equivalente a 0,6% do PIB).
O saldo nominal do déficit cresceu R$ 186,4 bilhões apenas em 2014, cerca de 3,3% do PIB, totalizando R$ 343,9 bilhões (6,3% do PIB). Em decorrência desse resultado negativo das contas do governo, a dívida bruta chegou a 63,1% do PIB, aumentando 6,4 pontos percentuais do PIB em apenas um ano.
As más notícias não se restringem a essas, já ruins o suficiente em si mesmas. O resultado teria sido ainda pior se levarmos em conta que em 2014 ocorreram receitas extraordinárias da ordem de 1%.
Essas receitas extraordinárias correspondem a fluxos de arrecadação não repetitivos e que poderão não ocorrer nos próximos exercícios.
O péssimo resultado fiscal não se deveu a uma frustração das receitas, já que elas continuaram a crescer e foram suplementadas por receitas extraordinárias. Na raiz do problema está o crescimento descontrolado das despesas, como vem ocorrendo faz muito.
Somente nos dois últimos anos a despesa cresceu a uma taxa média de 6,6% ao ano, já descontada a inflação no período.
Para esse crescimento descontrolado contribuíram diversos fatores, com ênfase nas despesas discricionárias, não obrigatórias, do governo; das desonerações na folha de pagamento, de resultado dúbio sobre o emprego; e dos diversos mecanismos de desoneração tributária postos em prática na gestão do mandato anterior da presidente Dilma Rousseff.
É esse quadro desalentador que fez com a senhora presidente mudasse de forma radical a forma com que a política econômica foi conduzida nos quatro anos de seu primeiro mandato.
Essa mudança está sintetizada na fixação da meta de superávit primário de 1,2% do PIB em 2015 (R$ 66,3 bilhões). Desse total, R$ 55,3 bilhões (1,0% do PIB) estão sob a responsabilidade do governo central e R$ 11 bilhões (0,2% do PIB) dos governos regionais.
Até agora, as vozes contra o ajuste fiscal vinham se concentrando na parcela do corte de despesas a ser realizado pela União. A partir dessa terça-feira, contudo, há uma rebelião das unidades regionais – prefeituras, notadamente – que acusam o governo central de cobrar taxas de juros “escorchantes” sobre a rolagem das dívidas dessas unidades para com a União.
Dessa forma, estão em perigo tanto os R$ 55,3 bilhões da parcela do ajuste do governo central como os R$ 11 bilhões dos governos regionais.
Tudo isso compromete a meta de ajuste real de 1,8% do PIB, já que aos 1,2% do PIB a ser realizado em 2015 acresce compensar os 0,6% do PIB de déficit primário produzido pelo excesso de gastos ocorrido em 2014.
As medidas de contenção de despesas já adotadas poderão produzir para o governo central uma economia da ordem de R$ 12 bilhões, decorrentes do potencial de cortes nos gastos com o seguro-desemprego, o abono salarial, a pensão por morte e o auxílio doença. A esses R$ 12 bilhões poderão ser acrescidos outros R$ 6 bilhões em 2016 com os cortes programados no abono salarial.
Apontei que esses cortes têm um potencial de redução do déficit porque essas medidas dependem de mudanças na legislação a ser aprovada no Congresso Nacional. Tarefa que até agora não se materializou e que deixou de fora do ajuste um trimestre inteiro desse ano.
No mercado estima-se que somente algo como R$ 10 bilhões seriam efetuados em 2015.
Novas medidas poderão ter impacto mais significativo, estimado pelo governo em mais de R$ 22 bilhões, e incluem o IPI para veículos e cosméticos, PIS/Cofins na importação, IOF no crédito à pessoa física e o retorno da Cide sobre combustíveis, entre outras.
Na Copa do Mundo de 1958, o técnico Vicente Feola, de prancheta em punho, explicava a Garrincha como o ataque de nossa seleção entraria na defesa da Rússia e conquistaríamos a vitória: a bola ia de pé em pé até que chegasse aos pés de Garrinha para marcar o gol.
Garrincha ouviu atentamente a explicação e perguntou: “Seu Feola, o senhor já combinou tudo isso com os russos?”
No ajuste fiscal brasileiro está tudo mapeado. Falta apenas combinar com os russos.