Sem papas na língua
O governador entrou no velório, cumprimentou a viúva, mas quando foi ver o amigo de juventude no caixão...
Triste com a notícia que acabava de receber, o então governador de São Paulo, Abreu Sodré, pediu à secretária que avisasse o motorista que a tal hora eles iriam ao velório de um amigo não político que havia falecido.
Mandou também que a secretária pedisse ao motorista que consultasse o guia da cidade para não ter dificuldade de encontrar a rua onde o morto seria velado.
Assim que o veículo entrou na rua procurada, Sodré enxergou o velório, mandou o motorista encostar o carro, desceu rapidamente e entrou na casa onde vizinhos e parentes choravam a morte do finado.
Sodré se aproximou da viúva que chorava num canto da sala e que acabou se assustando ao reconhecer que estava sendo abraçada e recebendo as condolências de ninguém menos do que o governador paulista.
Espantada, a viúva murmurou:
"O falecido nunca me disse que era amigo do governador", reagiu a senhora enquanto procurava conter as lágrimas.
"Seu marido era um homem simples, não gostava de contar vantagem", respondeu o governador.
Sodré, então, se dirigiu ao caixão, para se despedir do amigo que conhecera quando os dois frequentavam o tradicional bar "Ponto Chic", instalado no centro da capital, cujo proprietário era da cidade de Bauru, inventor do famoso sanduíche que leva o mesmo nome, ou, simplesmente, "Bauru".
De cara, Sodré ficou intrigado, porque o rosto pálido e inerte que via no caixão enfeitado com botões de rosa, era diferente daquele que conhecia há tantos anos, desde os bancos da Faculdade de Direito do Largo São Francisco e do tempo em que ambos protestavam e eram presos pelo Dops, a mando da polícia política do presidente-ditador Getúlio Vargas.
O governador não se conteve, segurou levemente o queixo do defunto, virava seu rosto para a esquerda e para a direita, mas não tinha jeito: a fisionomia não era a mesma do velho amigo.
O governador começou a desconfiar que tinha dado uma grande mancada e, só então, é que se deu conta de que havia entrado em velório errado.
Restou ao governador se despedir da viúva com toda sua elegância de udenista parecendo um mauricinho, deixando com a velha senhora o conforto em saber que seu falecido marido era muito mais importante e discreto, em vida, do que ela poderia imaginar. Sodré, então, foi à caça do morto certo.
Apesar de governar o Estado na fase mais violenta do terrorismo e da repressão policial-militar, período que nascia a Oban -Operação Bandeirante, embrião do sinistro Doi-Codi, centro de confissões, torturas e mortes de presos que eram considerados subversivos pelos "revolucionários" de 64, Sodré ainda encontrava motivo para satisfazer seu instinto de notório contador de piadas e criador de trocadilhos engraçados, mas também indesejáveis.
Ele era tão familiarizado com o hábito de "gozar" as pessoas que, às vezes, se tornava inconsequente, numa época em que o momento político da ditadura militar não comportava exageros. Ele não se importava de caminhar no fio da navalha.
Quando houve o atentado a bomba contra o quartel do Comando Militar do 2º Exército, no Ibirapuera, em que morreu o inocente soldado Mário Kozel Filho, não faltaram aqueles que defenderam uma intervenção militar em São Paulo; gente que queria tomar a cadeira do governador no Palácio dos Bandeirantes. Sodré ficou irritado ao saber que desejavam apeá-lo do Poder.
Sua irritação maior era voltada para um general de baixíssima estatura -pouco mais de 1 metro e meio- que era quem mais lutava para Brasília decretar a intervenção no Estado.
Sodré era um quadro importante da UDN, partido de Carlos Lacerda, que fomentou a "Revolução" de 64 e que esperava que o Poder caísse em seu colo. Lacerda ficou possesso quando soube que o marechal Castelo Branco substituiria o deposto presidente João Goulart.
Foi durante uma solenidade em grande estilo no Palácio do Governo que Abreu Sodré foi o mais inconsequente possível em toda sua vida de homem público.
Lá estava desfilando por corredores e gabinetes a nata das autoridades civis e militares, que se esbaldava com os comes e bebes oferecidos pelo governador.
O coquetel corria solto na base do vai-e-vem das autoridades, até o momento em que eles começaram a ir embora. Sodré, então, solíticito, pediu a um assessor que mandasse encostar os carros oficiais dos festeiros.
O governador, no entanto, foi traído pelo sub-consciente que não conseguia esquecer os conspiradores militares e, num assombro de arrepiar quem ouvisse seu pedido, ordenou ao assessor:
-"Aproveita e manda encostar também o patinete do general".