Segregação evita assédio sexual?
Enquanto mulheres se escondem em vagões femininos, os “tarados” andam à solta
Um dos preceitos mais conhecidos da Constituição Brasileira, alardeado por todos os cantos e tido como condição sine qua non para a vida digna do ser humano é frontalmente desacatado e parece que pouca gente se dá conta.
Estou me reportando ao “direito e ir e vir” que é tão defendido e lembrado em meio a situações de exceção, como nas ditaduras, mas que acaba um tanto no esquecimento quando é afrontado no dia a dia.
Mais especificamente, falo do direito de mulheres se locomoverem sem passar pelo constrangimento ou horror de serem assediadas sexualmente por “tarados”.
Já é lamentável o fato de não se poder ir a determinados lugares por falta de segurança, em virtude da existência da bandidagem e violência, que acomete homens, mulheres e crianças sem distinção.
Mas o assédio sexual nos locais e transportes públicos é o tipo de delito sorrateiro, que pode ocorrer até a luz do dia e que, por vergonha ou medo da vítima, passa desapercebido por aqueles que estão no entorno.
Para ilustrar o que eu digo vou reportar a seguinte história, relatada pela babá de uma cliente, recentemente.
A babá se chama Juliana e há cinco anos toma ônibus todos os dias para ir de casa ao trabalho. Certo dia chegou atrasada ao trabalho e contou o que se segue:
Juliana entrou no ônibus e conseguiu um assento. Logo a lotação aumentou, e as pessoas começaram a se acomodar em pé.
Na distância de três bancos à sua frente uma moça, em pé, começou a ficar muito nervosa, dando cotoveladas em um homem que estava ao lado, cujo rosto Juliana não podia ver. Mas conseguia enxergar a expressão de horror da moça. Juliana disse que começou a se sentir muito mal, achou que algo estranho estava acontecendo, pensou em assalto.
Pausa na história. Dá pra imaginar a apreensão da moça atacada? Dos outros passageiros que perceberam algo errado mas não sabiam o que fazer?
Pois é justamente para evitar esse tipo de situação que foi criada a lei nº 4.733/2006, estadual, válida no Rio de Janeiro, e que determinou a criação de vagões especiais no metrô da capital fluminense nos horários de pico, a exemplo do que ocorre, por exemplo, em Tóquio.
Como assim? Por medo, ser praticamente obrigada a utilizar um vagão “só” para elas? Entende como privilégio quem quer, mas a mim soa mais uma espécie de confinação.
Então, as mulheres que não querem adentrar o vagão para moças, ou errarem de porta, ou se o vagão já estiver lotado, ficam ainda mais expostas?
E o tal “tarado” continua agindo em todos os outros vagões?
Então, primeiramente, há o direito de ir e vir violado por homens que pensam ficar impunes; depois, para evitar o pior, deve-se incorrer em segregação? Pois é isso mesmo: o que “protege”, na verdade, aparta.
Basta pensar na história norte-americana. Como puderam surgir leis tão segregacionistas, especialmente no Sul dos Estados Unidos, separando brancos e negros?
Pois foram justamente medidas como essas, ditas de “proteção”, para evitar distúrbios, que aumentaram o abismo entre as pessoas e perpetuaram o preconceito e a discriminação.
Há outras maneiras de se enfrentar o problema. Voltemos à história de Juliana:
Em meio à opressão gerada pela situação, a moça que tentava reagir com cotoveladas gritou: “Motorista, pára o ônibus que tem um homem aqui dizendo que vai me levar para o mato!”.
O motorista parou. Um passageiro foi até o motorista, oferecendo o celular. O motorista ligou para a polícia e avisou os passageiros: “Vamos aguardar a chegada da polícia; até eles chegarem, ninguém desce”.
Juliana detalhou que só uma mulher reclamou da espera. Os demais passageiros mantiveram-se calmos. A polícia chegou rápido, fizeram uma barreira diante da porta do ônibus, que foi aberta e o “tarado” se entregou.
Surpreendente, não? Fiquei boquiaberta. Pensei que para esse episódio ter um final justo foi preciso a coragem da moça, a consciência do motorista e dos passageiros e a eficiência da polícia.
Mais ainda, foi preciso um tanto de solidariedade das pessoas, um sentimento que deveria ser básico para quem vive em sociedade.
Sempre que ouvimos notícias de barbáries cometidas contra as mulheres, todos nos comovemos, como é o caso das notícias que chegam da Arábia Saudita.
Em setembro, foi uma jovem que a lei islâmica condenou a dez chibatadas por estar dirigindo. Mais recentemente, uma mulher, no mesmo país, foi condenada à decapitação por “realizar bruxarias”.
Porém nossa indignação e comoção de nada valem se, bem diante dos nossos narizes, mulheres trabalhadoras são obrigadas a utilizar espaços determinados “só” para elas, para que se sintam protegidas e menos oprimidas.
Enfim, foi dessa forma que Juliana justificou seu atraso. Minha cliente comemorou o fim da história e se deu por satisfeita. Eu também.
?As opiniões expressas em artigos são de exclusiva responsabilidade dos autores e não coincidem, necessariamente, com as do Diário do Comércio