Focar o real
Comissão da Verdade se desvirtua ao pensar nos quilombolas e abrir conflito com afrodescendentes
É claro que devemos louvar a obra e a linha de Gilberto Freyre, nosso antropólogo maior, notável escritor, intelectual, militante político desde sempre, deputado constituinte em 1946 e solidário com o movimento de 1964. Ele interpretou o brasileiro como ele é: cordial, alegre, sem preconceitos, sem restrições a cor, credo e classe social do próximo.
Temos uma das três maiores mobilidades sociais do mundo. Nossas grandes fortunas foram construídas e não herdadas e, na lista das cem maiores, menos de dez são de terceira geração. Quando existe certo preconceito é por motivos econômicos e nunca sociais ou raciais. Agnaldo Timóteo, o inteligente e corajoso cantor, disse, com muita propriedade, que, onde o preto não entra, o branco pobre também não entra, e onde o negro rico entra o branco pobre não entra.
Agora surge um movimento para render a Comissão da Verdade – que pode encerrar suas atividades em dezembro, já prorrogada uma vez – para apurar débitos do Brasil em relação à população afrodescendente, antigos escravos. Querem abrir uma pauta de indenizações, ampliando este estranho e inusitado “quilombola”, cuja ameaça paira sobre milhares de propriedades urbanas e rurais do Brasil.
Esse tipo de movimento é que pode gerar atritos entre os brasileiros, que já estão divididos em relação à questão de cotas raciais, condenadas, inclusive, por supostos beneficiários. Garantir acesso universitário aos pobres – incluindo os afrodescendentes – só pode ser via aprimoramento do ensino público.
No mais, é o caso de se pensar nos registros do maior historiador brasileiro vivo, o acadêmico José Murilo de Carvalho, que em sua vasta obra aborda mais de uma vez o assunto. E registra que, na zona da mata mineira, por exemplo, grande parte dos que negociavam negros era de escravos alforriados.
E mais: não era pequeno o número daqueles que, conseguindo sair da condição servil, adquiriram escravos para seu serviço. Eram práticas da época, que não podemos modificar um século e meio depois. E a ninguém pode interessar mexer nestas feridas que atingem a todos nós.
Outro dado que não podemos esquecer é que a colonização portuguesa - aqui como nos seus antigos Estados ultramarinos, hoje nações independentes, sofridas com guerras internas - trouxe de positivo, como bem registrou Gilberto Freyre, a miscigenação natural. Mais da metade dos brasileiros tem, de alguma maneira, sangue negro ou indígena. E temos tido, ao longo da história, exemplos e mais exemplos de brasileiros ilustres, afrodescendentes, mesmo titulados do Império, parlamentares, intelectuais, militares, juristas, médicos e empresários de sucesso. Sem nenhum problema, e não é coisa recente. Na virada do século XVIII, dois dos mais notáveis brasileiros, Machado de Assis e Ruy Barbosa, eram mulatos de primeira ou segunda geração.
A pauta do Brasil é outra. É a das dificuldades na economia, o bom uso dos recursos destinados à saúde, à educação e à segurança pública. Não deixa de ser elitista e equivocado o destaque dado a essa pauta de questões secundárias, diante do sofrimento das camadas mais humildes da população.