Um século de duas guerras mundiais, uma terceira evitada por pouco e milhões de vítimas de regimes brutais é mais do que suficiente para nos alertar sobre o poder e o perigo das ideias mortalmente erradas
França, Inglaterra e Estados Unidos comemoram neste 11 de novembro o centenário do encerramento das hostilidades na Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Como grandes vencedores do conflito, cada um deles tem lembranças muito próprias a evocar, mas o significado da guerra interessa também a outros países, inclusive ao Brasil, que dela participou.
O fim da Grande Guerra, como a chamavam os contemporâneos que não tinham ideia do que estava por vir, inaugurou o terrível século XX.
A luta iniciada em agosto de 1914, que deveria terminar em poucos meses de glória, conquista e revanche, se estendeu por quatro anos de frustração, ruína e descrédito, matou vinte milhões de pessoas, desfez quatro impérios e deu início ao pesadelo totalitário que ensanguentou e assombrou todo o mundo por sete décadas.
O incidente que levou à guerra é razoavelmente conhecido. Foi o assassinato do herdeiro do trono Habsburgo, o Arquiduque Franz Ferdinand, e de sua esposa, a Duquesa Sophie, no dia 28 de junho de 1914, em Saravejo, capital da província austríaca da Bósnia-Herzegovina, limítrofe da irrequieta Sérvia, pelo nacionalista bósnio Gavrilo Princip, este ligado a uma sociedade secreta com ramificações no exército da Sérvia.
O que nunca ficou esclarecido foi a real motivação do atentado e tampouco as razões pelas quais a Alemanha deu, a 5 de julho, “um cheque em branco” (SHERMER, David. “A Primeira Guerra Mundial”, In “Guerras do Século XX”) à Áustria para atacar a Sérvia. A partir daí, a lógica do acerto de contas, das alianças secretas e das mobilizações militares prevaleceu sobre a diplomacia.
Em 1o de agosto, a Alemanha declarou guerra à Rússia e, no dia 3, à França, invadindo a Bélgica a 4, o que provocou a entrada da Inglaterra na guerra.
A ação indiscriminada dos submarinos alemães provocaria, mais tarde, a entrada dos Estados Unidos no conflito (06/04/1917), a mesma razão que envolveu também o Brasil (26/10/1917), que teve a sua participação limitada ao envio de uma força naval à África, de alguns oficiais do Exército para lutarem nas fileiras francesas, de aviadores que se integraram à aviação aliada e de uma importante missão médica à França.
Contrariando o revisionismo que marcou, há quatro anos, o início do conflito, hoje, as comemorações dos vencedores lembram apenas os seus mortos e a sua História.
O que continua esquecido é o poder das ideias no engendramento dessa guerra que mudaria a face do mundo. Como suas causas, apontam-se comumente o nacionalismo, o imperialismo, o industrialismo e o militarismo, sem dúvida, aspectos característicos daquela conjuntura que favoreceram a escalada que culminou em desastre.
Porém, o que foi determinante para a Alemanha ser tão temida e desejar tanto a guerra que desencadeou permanece praticamente inexplorado: como ela se via e o que ela significava.
Ao longo do século XIX, na Alemanha consubstanciou a mais vigorosa crítica à nascente ética capitalista e liberal, tanto pelo florescimento da escola histórica alemã, que pregava o papel predominante do Estado, como pela assimilação do partido socialdemocrata, o mais marxista dos partidos socialistas europeus, no Segundo Reich (1871-1918).
A essa refinada reação de cunho político, filosófico e ideológico, somou-se algo mais profundo, o germanismo, um sentimento de identidade racial e cultural que permeava as populações etnicamente germânicas da Europa Central e Oriental.
Esse sentimento chegaria ao final do século com uma estética própria, inspirando toda uma visão de mundo oposta ao racionalismo predominante no Ocidente e despertando esperanças radicais de ruptura com o convencionalismo burguês praticado na França e na Inglaterra.
Não foi difícil esse pensamento chegar, alguns anos depois, em 1914, ao ponto de “a maioria dos alemães considerar em termos espirituais o conflito armado em que estava entrando”, tomado “como alicerce da cultura ou como patamar para um nível mais elevado de criatividade e espírito”. Para os alemães, a guerra tornou-se uma ideia, parte essencial da imagem e do amor próprio da nação (EKSTEIN, Modris, “A Sagração da Primavera”). Livrar-se dessa ideia tem sido o desafio da Alemanha desde 1945.
Para o mundo, um século de duas guerras mundiais, uma terceira evitada por pouco e milhões de vítimas de regimes brutais é mais do que suficiente para nos alertar sobre o poder e o perigo das ideias mortalmente erradas, não importa o povo, a cultura ou a nação.
**As opiniões expressas em artigos são de exclusiva responsabilidade dos autores e não coincidem, necessariamente, com as do Diário do Comércio
IMAGEM: Arquivo/Comemoração, em Paris, pela suspensão dos conflitos da Primeira Guerra Mundial, em 11 de novembro de 1918
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