Além do Je suis Charlie
O atentado de Paris demonstrou exemplar organização dos terroristas e não foi um ato isolado. Os muçulmanos na França continuam marginalizados
O mundo civilizado continua perplexo e de luto pelo brutal ataque de militantes islamistas à revista Charlie Hebdo. O requinte de crueldade e a perfeita organização do ataque ainda reverberam, mundo afora. Os fatos são de todos conhecidos; talvez valha a pena explorar os antecedentes do ataque e suas possíveis consequências.
Em primeiro lugar é preciso lembrar que não se trata de um evento isolado, cuja motivação é novamente a sátira a figuras sagradas do Islã. O terrorismo organizado vem de longe atuando na Europa, sendo exemplos marcantes os atentados ao metrô de Madrid em 2004 e em Londres em 2005.
Cai por terra, portanto, a ideia romântica de atos individuais de indivíduos isolados. A organização do grupo terrorista revela um longo processo de planejamento do atentado e uma firme e determinada execução. Ambos demandaram dos participantes da macabra missão adestramento em campos de treinamento, provavelmente em território dominado pela ISIS.
A repetição dos atentados faz também cair por terra a ideia de que é possível garantir a segurança contra ataques dessa natureza em países com regimes democráticos (Bloomberg). Os serviços de segurança dos países europeus já dispõem de poder e autoridade suficientes para fazer frente a atos terroristas dessa natureza. Simplesmente, é possível minimizá-los, não impedi-los totalmente.
Em Segundo lugar, há um caldo de cultura na Europa favorável à expansão do terrorismo organizado no continente. Os primeiros migrantes muçulmanos continuam marginalizados na sociedade europeia, quer por dificuldades deles próprios em conviver com a cultura de liberdade nos países hospedeiros, quer por desconfiança da população europeia com relação aos migrantes.
A isso se soma, mais recentemente, o enorme número de refugiados de todo tipo de conflitos nos estados islâmicos, da Líbia à Síria, passando pelo Egito e pelo Líbano, para ficar com somente alguns.
É nessas comunidades que vivem na periferia de Paris e outras grandes cidades europeias que se encontra o mais alto desemprego, já substancial em média para muitos dos países europeus.
Finalmente, há que levar em conta também que o fracasso das tentativas de modernizar o Islã, especialmente a Primavera Árabe, contribuiu para a frustração de parte da juventude islâmica. O Estado Islâmico forneceu um novo campo de treinamento para esses jovens e atraiu milhares deles para uma nova cruzada contra os infiéis muçulmanos – um retrato espelhado do ocorrido durante a Guerra Civil Espanhola, quando também milhares de militantes afluíram à Espanha para combater os que consideravam inimigos da civilização.
O ataque terrorista em Paris decorre de tudo isso e muito mais. Tem por novidade a audácia, o planejamento, a execução e o fato de os terroristas serem cidadãos franceses, treinados provavelmente no Estado Islâmico na Síria. Não são cidadãos do norte da África ou da península arábica. Não provêm do Iêmen ou do Irã. Em Paris, os terroristas eram todos franceses.
Alguém perguntará: por que a França? Além de conter a maior população muçulmana dos países europeus, duas outras características ajudam a explicar a escolha do local para o ataque, como observou Ian Bremmer: é maior na França a mais ampla liberdade de expressão contra qualquer tipo de religião, como foi somente a França que conduziu expedições punitivas contra o Al Qaeda contra o militarismo islâmico, na Líbia, Mali, Iraque e Nigéria. Não deve ser coincidência que o presidente do Mali ladeava o presidente francês na marcha que reuniu diversos mandatários de todo o mundo.
Quem ganhou politicamente com o atentado? Há um vencedor no curto prazo, o presidente François Hollande. Tendo recordes de impopularidade, ganhou um alívio transitório, quer pela união dos franceses em torno da autoridade do presidente, quer pelo rápido desfecho da ação contra os terroristas. Resta saber por quanto tempo esse ganho persistirá.
Ganho também o Front National, o partido protecionista na economia, socialmente conservador e nacionalista na política de Marine le Pen. O crescente radicalismo islâmico provavelmente impulsionará a votação do partido. Há quem estime que sua votação mais que dobrará, dos 18% na última eleição, para mais de 36% na próxima – tornando a direita francesa um ator importante na política do país.
Não surpreenderá se aumentarem os ataques à população islâmica na França e os protestos contra a sua presença em outros países. Exemplo disso foi a grande manifestação em Dresden, na Alemanha contra a permanência dessa população no país.
Tudo isso indica que a Europa terá novas turbulências políticas adicionais aos problemas econômicos já existentes – em que a Grécia, provavelmente com um novo governo que se opõe ao programa de estabilização, voltará ao centro das preocupações.
.