A reforma constitucional da presidente Bachelet
O quadro institucional do Chile enfrenta um momento ambíguo, com o risco de desmonte de seu bem-sucedido modelo econômico
No último 28 de abril, a presidente do Chile, Michelle Bachelet, propôs uma reforma da Constituição do país, a iniciar-se no “mês do Chile”, setembro. Nesse mês se iniciará um processo constituinte.
A iniciativa causou surpresa. Não que se ignorasse que a Comissão Engel (Conselho Consultivo contra os Conflitos de Interesse, o Tráfico de Influências e a Corrupção) tivesse sido encarregada pela senhora presidente para estudar, entre outros, o impacto da corrupção no governo chileno e propor medidas para corrigir esses ilícitos.
Para a senhora Bachelet está em curso um processo de redação de uma nova Carta Fundamental, cidadã e democrática.
O que não foi dito é como esse processo será conduzido. Que papel desempenhará o Congresso chileno? Ou será convocada uma assembleia constituinte nos moldes das convocadas na Venezuela, na Bolívia e no Equador para redigir a minuta do novo texto constitucional?
Uma vez aprovado por esse processo, será a nova Constituição outorgada, como o fez Pedro I com o texto constitucional de 1826? As afirmações da presidente são vagas e deixam dúvidas quanto ao papel do Legislativo chileno, como origem da ordem jurídica do país. Refere-se en passant a “diálogos, debates, consultas e conselhos”.
O pano de fundo da reforma é a situação da economia chilena. Modelo de sucesso para os demais países da região a partir das reformas implantadas a partir da década de 1970, o governo socialista está desfazendo todas as conquistas anteriores.
Essas conquistas haviam sido mantidas pelos seus antecessores de diferentes composições políticas. Entre elas estão o crescimento que reduziu a pobreza de 45% nos anos oitenta para 11% em 2011, as instituições democráticas e o Estado de Direito mais amplo da América Latina.
Parece claro que, a depender da base de apoio do governo de Michelle Bachelet, tudo isso pode mudar. É o que deseja o senador Jaime Quintana, da Nova Maioria, ao afirmar: “vamos passar aqui uma retroescavadeira para destruir as fundações estagnadas do modelo neoliberal”.
Para corrigir o que percebem como um ganho dos ricos às expensas dos mais pobres, a coalisão do governo pretende introduzir reformas no sistema tributário, educacional e na Constituição.
Pretende-se, com as reformas, tornar a carga tributária das empresas na terceira mais alta entre os países da OCDE; na educação, pretende eliminar o sistema bem-sucedido de bônus educacionais; e a reformar mais uma vez a Constituição, depois de mais de 200 emendas terem sido promulgadas após a redemocratização.
As instituições chilenas são sólidas e permitiram a transferência de poder sem percalços, desde o fim do regime militar até nossos dias. A despeito disso e do fato de o sistema político-partidário do país e a Constituição chilena serem exemplos para a maioria dos países da América Latina, há o forte apelo por sua reforma.
Afirma-se que a Constituição atual ainda carece de melhorias para contemplar integralmente princípios e práticas democráticas. Há quem atribua à atual Constituição as oportunidades para os casos de corrupção detectados.
Que dificuldades esse processo poderá enfrentar à frente, depois de oficialmente lançado em 21 de maio próximo?
Em primeiro lugar, há divergentes opiniões a respeito, não somente sobre o projeto, mas até mesmo sobre sua oportunidade no momento. Outros divergem sobre que mecanismos são mais adequados para a redação da nova Constituição.
A isso se soma o momento político por que passa o país, assolado por denúncias de corrupção e, do lado do governo, a baixa popularidade da presidente, pelos padrões chilenos, hoje em torno de 31%.
Infelizmente, sempre que problemas graves se põem aos governantes de plantão, torna-se irresistível a tentação de promover um “amplo e irrestrito” debate na sociedade em torno de um novo projeto de Constituição.
O governo atual conseguiu mobilizar um forte apoio popular a um novo texto constitucional. O mesmo ocorre com o apoio a uma assembleia nacional constituinte, embora essa opção não esteja contemplada no ordenamento jurídico chileno.
Se de fato vier a ocorrer, são fundamentais a transparência e o diálogo para que a reforma constitucional não pareça simplesmente um desvio de atenção da sociedade dos casos de corrupção detectados.
Somente por esse processo será possível levar a bom termo uma reforma que fortaleça a democracia chilena e não ponha em risco as conquistas econômicas dos últimos 40 anos no Chile.
E que não pareça, ao povo chileno, meramente um recurso surrado de transferir a atenção da corrupção no governo para a Constituição.