Inadimplência dos consumidores caiu nos últimos dois anos
Ainda que número de inadimplentes permaneça elevado, taxa de inadimplência estabilizou-se em patamar historicamente baixo
*Com Flávio Calife, economista da Boa Vista SCPC
O tema da inadimplência é relevante para o comércio não somente porque as contas em atraso podem representar perdas para o setor, mas também porque elas estão diretamente relacionadas à oferta de crédito na economia e, portanto, ao desempenho das vendas, especialmente em setores como vestuário, móveis, eletrodomésticos, materiais de construção e passagens aéreas, nos quais a participação dos financiamentos é mais relevante.
No entanto, é comum haver confusão em relação aos conceitos de dívida, atraso e inadimplência e às diferentes metodologias utilizadas para o seu cálculo. Conhecer os diferentes conceitos e metodologias, assim, é o primeiro passo para quem pretender fazer uma avaliação do problema.
A Boa Vista SCPC publica periodicamente informações sobre a evolução do crédito e da inadimplência. Outras entidades como o Banco Central (BC) e a Confederação Nacional do Comércio (CNC), por exemplo, também produzem dados sobre o tema. Vamos analisar alguns deles.
Alguém pode ser considerado endividado se tomou qualquer tipo de empréstimo. De acordo com a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), da CNC, o percentual de famílias com dívidas era de quase 60% em julho, conforme é possível observar no gráfico 1. O maior valor já registrado pela série foi de 65,3%, em fevereiro de 2011.
O número, obtido por meio de pesquisa amostral, nada diz, porém, a respeito do volume total de endividamento.
O cartão de crédito costuma aparecer como o principal tipo de dívida, apontado por quase 80% das famílias entrevistadas. Do ponto de vista conceitual, porém, qualquer pessoa que realizou uma simples compra no cartão de crédito está endividada, já que só liquidará a transação no vencimento da fatura.
Ter uma dívida no cartão é necessariamente um problema? Não se o cliente consegue manter em dia o pagamento da fatura. Mais do que um meio de financiamento, o cartão é um meio de pagamento que, se bem utilizado, proporciona ao consumidor uma série de benefícios como segurança, praticidade, maior prazo de pagamento e pontuação em programas de fidelidade.
Por outro lado, se ele precisa recorrer ao rotativo do cartão de crédito, o endividamento ganha outra dimensão, já que as taxas de juros da modalidade estão entre as mais altas do mercado e podem ultrapassar os 12% ao mês, o que encarece a dívida e aumenta o risco de inadimplência. De acordo com dados do BC, porém, do saldo total das operações de cartão de crédito em julho, somente 17% (R$ 34 bilhões) eram de financiamento rotativo.
Estar endividado, portanto, não é algo necessariamente preocupante, desde que, é claro, o consumidor tenha condições de manter o pagamento do principal e dos juros em dia, sem comprometer suas despesas de primeira necessidade. Além disto, não faz sentido chamar de endividamento pagamentos recorrentes como aluguel, contas de água, energia elétrica e gastos com transporte e supermercado, muitas vezes, por sinal, realizados com o cartão de crédito.
Para avaliar a capacidade de pagamento das famílias, o Banco Central acompanha a evolução do endividamento em relação à renda e do comprometimento da renda com o pagamento de dívidas.
Como mostra o gráfico 2, após atingirem os maiores valores da série em 2012, resultado de um longo período de expansão do mercado de crédito, tanto o endividamento como o comprometimento de renda – desconsiderando, aqui, o crédito habitacional – registraram queda a partir de então, mantendo-se relativamente estáveis de 2017 em diante.
A evolução se deve tanto a um comportamento conservador por parte dos bancos que, ante o aumento do nível de endividamento e inadimplência, tornaram-se mais criteriosos na concessão dos empréstimos, quanto dos consumidores, que, especialmente durante a crise, cortaram gastos e evitaram novas dívidas.
A Peic da CNC também estima a proporção de famílias endividadas por parcela de renda comprometida com o pagamento de dívidas. Em julho, 20,5% das famílias endividadas comprometiam mais de 50% da renda com dívidas, proporção que chegou ao pico de 26,3% em janeiro de 2016.
Já inadimplência diz respeito a contas atrasadas, sejam elas financeiras – empréstimos bancários – ou não financeiras – contas de consumo, por exemplo. Contudo, é preciso diferenciar os indicadores que medem o valor total das contas em atraso dos que medem o número de famílias com contas em atraso.
Além disto, é o período de atraso que define o cliente como inadimplente. Nas estatísticas do BC – que consideram os ativos do Sistema Financeiro Nacional –, são considerados na taxa de inadimplência os atrasos superiores a 90 dias. Conforme mostra o gráfico 3, a inadimplência das operações de crédito com recursos livres para pessoas físicas, depois de atingir 6,3% no auge da crise recente, passou a cair com a recuperação da economia e do mercado de trabalho, chegando a 5% em julho deste ano.
A taxa de inadimplência PF total – quando também são considerados os recursos direcionados –, por sua vez, passou de 4,3% para 3,5% no mesmo período.
O recorde de inadimplência das pessoas físicas na série do BC foi registrado em 2012, quando a taxa com recursos livres atingiu 7,2% e a taxa total, 5,5%.
Vale ressaltar que os indicadores são calculados, neste caso, com base nas informações de valores de empréstimos enviadas pelas instituições financeiras que fazem parte do Sistema Financeiro Nacional, e não baseados em pesquisa amostral.
A Boa Vista SCPC, por sua vez, mede os registros de inadimplência dos consumidores a partir da quantidade de novos registros de dívidas vencidas e não pagas informados pelas empresas credoras.
Considerando esta metodologia, a inadimplência do consumidor caiu 4,0% no acumulado em 12 meses (agosto de 2017 até julho de 2018 em relação aos 12 meses antecedentes). Conforme apontado no gráfico 4, há uma correlação bastante forte entre a evolução do indicador da Boa Vista SCPC e a taxa de inadimplência apurada pelo Banco Central.
Já outros indicadores buscam medir o número de consumidores e famílias com contas em atraso. É o caso, novamente, da Peic da CNC, segundo a qual a proporção das famílias nesta situação era de quase 24% em julho, conforme mostra o gráfico 1 – o maior valor da série (29,1%) foi registrado em janeiro de 2010.
Neste caso, se, de um mês para outro, uma família pagou quase todas as dívidas atrasadas menos uma, ela continuará sendo considerada no grupo das famílias com contas em atraso, ainda que o valor das contas atrasadas e a parcela da renda comprometida com dívidas tenham recuado. Não há como negar, no entanto, que a situação financeira desta família melhorou no período.
Pelo critério do Banco Central, uma família que não pagou em dia a parcela de um determinado financiamento não será considerada inadimplente se o atraso for menor do que 90 dias.
Já em relação à inclusão do consumidor nos órgãos de restrição ao crédito, não é estabelecido um prazo mínimo para que ele seja negativado pelo credor. Por este critério, portanto, o cliente pode ser considerado inadimplente já a partir do primeiro dia de atraso. Atualmente, porém, o consumidor demora cerca de 70 dias para ser incluído na base de dados do SCPC.
Por sinal, outro dado que costuma chamar atenção é o do total de brasileiros negativados, o qual, segundo estimativas dos birôs, chega hoje a cerca de 60 milhões, o equivalente a 41% da população adulta. Este número absoluto, no entanto, deve ser relativizado, dado que as características da população se modificam ao longo do tempo.
Estudo recentemente divulgado pelo Banco Santander (20/08/2018) destaca que, embora 41% represente um percentual elevado, não se trata do maior valor da série histórica, ficando abaixo do observado entre junho de 2012 a julho de 2017 e do pico de 43,6% observado em maio de 2016.
Independentemente do indicador utilizado, é fato que a proporção de consumidores e famílias endividadas é historicamente elevada no Brasil, com oscilações ao longo do tempo, contudo, que muitas vezes não chegam a ser estatisticamente significativas – por se tratarem de pesquisas amostrais, a margem de erro sempre precisa ser considerada na análise.
A taxa de inadimplência (medida como proporção de ativos de crédito com atraso superior a 90 dias em relação ao total de ativos), por sua vez, também pode ser considerada alta se comparada a de outros países. Atualmente, porém, ela é a menor dos últimos dois anos e bem menor do que a observada em 2012, quando atingiu o pico da série histórica.
Tanto a elevada taxa de inadimplência quanto o expressivo número de inadimplentes são preocupantes, claro, visto que, além de refletirem a dificuldade de acesso ao mercado consumidor de uma parcela significativa da população, também comprometem a oferta de crédito e, consequentemente, toda a economia do país.
Para reduzir a inadimplência de forma sustentável, é preciso atacar as suas causas conjunturais – o índice acompanha de perto a evolução do mercado de trabalho – e estruturais, estas associadas, entre outros fatores, à falta de informação por parte de consumidores e instituições financeiras, ao baixo nível de educação financeira da população, à elevada concentração bancária e às altas taxas de juros de mercado.
A regulamentação e o incentivo ao desenvolvimento das fintechs, a portabilidade do salário e do crédito e a implementação do cadastro positivo são medidas essenciais e que devem colaborar nesta frente.
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