A Venezuela não está mais à beira do abismo. Já caiu nele
Crise é tão profunda que o ex-ministro venezuelano do Planejamento, Ricardo Haussmann, sugere uma intervenção militar externa para derrubar a ditadura de Nicolas Maduro
Se um país vizinho entra em colapso, o problema não é só dele. É nosso também, porque desestabiliza uma de nossas fronteiras.
A Venezuela é o grande exemplo negativo. Atingiu o fundo do poço. A inflação nos dez primeiros meses de 2017 foi de 1.400%. Não há apenas desabastecimento. Há fome.
Um salário mínimo em 2012 comprava 52,8 mil calorias. Hoje só compra 7 mil, que não alimentam, nem precariamente, uma família de cinco pessoas.
Há três anos a ditadura não publica estatísticas. Mas o PIB per capita caiu 30% desde 2013, e a produção de petróleo – as maiores reservas mundiais são venezuelanas –também cai desde 2015, com poços e refinarias sucateados.
Em dezembro, a ditadura expulsou os embaixadores do Brasil e do Canadá. Por coincidência, países com dívidas a receber por obras públicas.
E também no mês passado Maduro acusou Portugal de ter boicotado a exportação de 20 mil toneladas de pernil para a venda subsidiada das ceias de fim de ano.
Mas Caracas não pagou os 40 milhões de euros pela carne, que acabou sendo entregue à vizinha Colômbia.
O The New York Times publicou recentes reportagens sobre o desmonte do sistema de saúde e seus efeitos no aumento da mortalidade infantil e de doenças que voltaram a ser endêmicas.
Até a TV bolivariana relatou no ano passado a morte, por desnutrição, de idosos internados num asilo de Caracas.
NÃO HÁ MAIS SAÍDA POLÍTICA
Paradoxo: com no mínimo 80% da população em oposição ao regime, Nicolas Maduro deverá ser reeleito em março para um segundo mandato, como sucessor do finado Hugo Chávez.
A receita da ditadura é simples: barrar a oposição.
Dos quatro partidos da Mesa de Unidade Democrática (MUD), três foram praticamente colocados na ilegalidade por não jurarem fidelidade a uma pseudo-Assembleia Constituinte formada em junho último, sem oposicionistas e sem o voto universal.
Uma variante da mesma receita vigorou na escolha dos governadores. A ditadura elegeu 18, e a oposição apenas quatro. Mas só três tomaram posse, porque o último se negou a aceitar a “Constituinte”.
Essa assembleia de mentirinha substitui em todas as atribuições a Assembleia Nacional, eleita em dezembro de 2016 e na qual a oposição levou dois terços das cadeiras.
Mas o colegiado unicameral não conseguiu publicar nenhuma lei. Foi considerado inidôneo pelo Supremo de 33 ministros – eram apenas 11, mas Chávez o completou com comparsas -, que funciona como o braço judicial do regime.
Duas outras eleições do ano passado também terminaram com a vitória de candidatos oficiais. Houve de tudo, como o descadastramento de eleitores hostis dos programas para a compra de comida subsidiada à cassação dos eleitos da oposição na capital.
Até 2016, os opositores se esforçaram para afastar Maduro por meio de um “referendo revogatório”, que ocorreria pela coleta sucessiva de assinaturas.
Mas o jogo foi interrompido depois da decisão da Comissão Eleitoral de descredenciar os partidos envolvidos. Enquanto isso, parte de seus dirigentes foi presa ou partiu para o exílio.
INTERVENÇÃO EXTERNA
A única conclusão é de que se esgotaram as vias normais para substituir o establishment bolivariano – comandado por burocratas e pela oficialidade corrupta do Exército.
A hierarquia fardada é acusada de associação com o crime organizado e atuaria, por meio do vice-presidente Tareck El Aissami (e a informação é da norte-americana DEA), no mercado da cocaína.
Eis que surgem nas últimas horas duas surpreendentes informações.
A primeira saiu na edição de janeiro e fevereiro da revista Político, especializada em política externa americana.
Segundo ela, o presidente Donald Trump teria cobrado a “opção militar” na Venezuela em encontros com presidentes da Argentina, Brasil, Colômbia e Panamá.
Pois a mesma ideia está presente em texto distribuído nesta terça-feira (02/01) pelo Project Syndicate, em Cambridge, e assinado por Ricardo Haussmann, ex-ministro do Planejamento da Venezuela (1992-1993), ex-economista chefe do Banco Interamericano de Desenvolvimento e hoje professor em Harvard.
O que Haussmann propõe é relativamente simples. A Assembleia Nacional – a legítima – votaria o impeachment de Maduro e nomearia um governo de transição.
Este, por sua vez, faria um apelo à intervenção militar internacional para substituir o regime autoritário e corrupto dos bolivarianos.
Não seria uma solução submetida ao Conselho de Segurança da ONU, onde Rússia e China – os dois últimos aliados de Maduro – têm poder de veto.
Mas não é uma coisa simples.
Na Colômbia, o presidente Juan Manuel Santos recebeu o Nobel da Paz por negociar o fim das guerrilhas das Farc, e dificilmente colocaria tropas a serviço da deposição do chavismo.
No Brasil, Michel Temer até conseguiria o apoio da alta oficialidade do Exército. Mas compraria uma briga homérica com o Partido dos Trabalhadores, que apoia a ditadura venezuelana.
Maurício Macri? Difícil imaginar, pois o presidente argentino complicaria seus planos de reeleição e, com o histórico da aventura militar nas Malvinas (1982), daria argumentos incômodos à oposição peronista.
E Donald Trump? Os Estados Unidos têm hoje na Coreia do Norte uma pulga bem mais importante para se coçar.
Queimar um cartucho com a Venezuela também levaria a uma divisão aguda entre os latino-americanos, com o fortalecimento do nacionalismo no Uruguai, Bolívia ou Nicarágua.
A verdade é que a ditadura bolivariana não tem legitimidade e, em caso de eleições livres, ela cairia como um castelo de cartas.
Mesmo que não se acompanhe por uma intervenção militar sugerida por Haussmann, o projeto – noticiado nesta quarta-feira (03/01) em Caracas apenas pelo jornal de oposição Tal Cual – põe lenha na fogueira de uma discussão infinita sobre a democracia na América Latina.
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