A pré-mentira de todos os dias
Hoje, neste Brasil que parece cada vez mais medieval, pior do que não distinguir a verdade da mentira, toma-se uma pela outra
Todos os dias somos bombardeados com notícias que trazem embutidas verdades e mentiras, de um cinza que tolda nossa compreensão dos fatos e acontecimentos.
Quem se limita a lê-las sem procurar saber o que as motiva será enganado de antemão.
Churchill foi definitivo quando disse que “há um terrível conjunto de mentiras circulando ao redor do mundo, e o pior de tudo é que metade delas são verdadeiras”.
Distinguir a verdade da mentira é o maior desafio colocado ao homem público, uma tarefa indelegável da qual depende seu sucesso ou fracasso político.
Mais grave é o que acontece à sociedade na qual triunfa a mentira, quer pela ação de suas lideranças, quer pela incapacidade delas em distingui-la.
Mas a mentira tem sua morfologia.
Enquanto a verdade é, a mentira precisa ser.
A verdade se revela pelo conhecimento moralmente orientado. Já a mentira acontece por uma intenção.
Isso por que verdades construídas são mentiras, o contraponto de que nenhuma mentira existe por si.
Mas tanto uma como outra acabam se revelando, não sem esforço e por vezes tarde demais, para desfrute de poucos e prejuízo de muitos.
Um risco maior hoje em dia, quando os profissionais da mentira dispõem de arsenais e orçamentos ilimitados para instrumentalizáa-la a serviço do poder.
Nesses casos, para que as mentiras prosperem, é preciso um conjunto de ideias que sirva para ocultar alguma coisa, em função de uma meta, seja ela qual for.
Essa é a pré-mentira, uma prática que não tem nada de inédito, empregada ao longo da História com resultados eficazes.
Um dos casos bem documentados é o do processo do assassinato do irmão do rei da França, o Duque de Orléans, em 1407, em plena Guerra dos Cem Anos, por ordem do Duque da Borgonha, João Sem Medo [na imagem que abre este artigo].
O mandante inicialmente ostentou um luto calculado pela sua vítima. Depois, à medida que a investigação se aproximou do covil de seus sicários, ele disse que o culpado fora o diabo, por influenciá-lo.
Tratou então de colocar-se fora do alcance dos investigadores, saindo de Paris, para voltar à cidade somente depois que seus acólitos desmoralizaram o assassinado aos olhos do povo que recebeu o assassino de braços abertos.
E por fim, escolheu com todo cuidado o teólogo, pregador e poeta Jean Petit para encenar a sofisticada peça de difamação da vítima perante uma seleta audiência de nobres que compareceu à sessão de investigação acontecida em 8 de março de 1408, no Hôtel Saint-Pol, em Paris.
Ajudou-o o hábito medieval de tomar “um motivo como explicação, de preferência o mais comum de todos, o mais imediato ou o mais tosco”, como apontou o historiador Johan Huizinga.
Pouco importou se Jean Petit e seus patrocinadores borgonheses acreditavam realmente nas peças de difamação que espalhavam. O que ficou foi a convicção popular na legitimidade da vingança perpetrada pelo adultério de Orléans com a rainha, independentemente da credibilidade das fontes dessa teoria.
A verdadeira razão do crime –a determinação do Duque da Borgonha de afastar por qualquer meio seu rival na disputa pela coroa – não foi percebida pelos franceses em um dos momentos mais deprimentes de sua história.
A mentira tem um preço óbvio: é proporcional à sua extensão.
Cada povo, à sua época, tem que enfrentar suas mentiras e verdades.
Hoje, neste Brasil que parece cada vez mais medieval, pior do que não distinguir a verdade da mentira, toma-se uma pela outra.
A mentira de que uma condenação serve tão somente para impedir uma eleição oculta a verdade dessa eleição servir exclusivamente para ocultar os crimes que levaram a essa condenação.
E algo bem pior, e maior. Que esses crimes continuem, sem riscos de condenação.
A pré-mentira no Brasil tem sujeito, nome e predicado: Lula.
E seus beneficiários.
IMAGEM: Assassinato do duque d'Orléans/The British Library
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