O traficante e a Indonésia assassina
O brasileiro executado neste sábado é moralmente indefensável. Mas a pena de morte - o direito de o Estado matar - é mais indefensável ainda
O traficante brasileiro Marco Archer Cardoso Moreira foi morto às 15h30 deste sábado (hora de Brasília) por um pelotão indonésio de fuzilamento. O cidadão era moralmente indefensável, por ter sido preso, há 11 anos, quando tentava desembarcar em Jacarta com 13,5 quilos de cocaína, escondidos nos tubos de sua asa delta.
Mas o problema não é rigorosamente este. Ninguém “merece” a pena de morte. A simples sobrevivência dessa macabra instituição remete a uma concepção anacrônica do direito penal. Por ela, a eliminação do criminoso também eliminaria o crime, e o Judiciário seria o porta-voz da Lei de Talião.
A oposição às execuções foi por muito tempo tarefa de acadêmicos, pequenos partidos e grupos religiosos. A qualidade mudou com a Anistia Internacional, que tem feito um monitoramento rigoroso da pena de morte e seu glorioso recuo no Planeta.
Há imensas áreas geográficas praticamente limpas de execuções. É sobretudo o caso da União Europeia, onde os países membros se comprometem a reformular suas legislações. Não é uma questão apenas moral. É algo derivado de uma concepção mais ampla dos direitos humanos. O Estado não pode e não deve tirar a vida de ninguém, tampouco de um criminoso.
A questão é antiga. No século 19 foi exaustivamente discutida sob o ângulo da exemplaridade. Quem o resumiu muitíssimo bem, em "O Século de Schnitzler", foi o historiador britânico Peter Gay (aliás, grande biógrafo de Freud).
Grosso modo, com gerações culturalmente fincadas em regiões urbanas, a classe média sentia-se insegura com a criminalidade na Europa e nos Estados Unidos e acreditava que o enforcamento dissuadia outros criminosos em potencial de cometerem crimes hediondos.
O problema básico, no entanto, é de que a dissuasão nunca funcionou. Bibliotecas inteiras foram escritas sobre o tema, e nenhum estudo comprovou estatisticamente que a criminalidade desaparecia ou se reduzia a incidência irrisória com a eliminação física dos criminosos.
Temos hoje um quadro paradoxal. Por questões culturais ou religiosas, países como a Arábia Saudita e o Irã aplicam a pena de morte com vergonhosa frequência. E nas sociedades supostamente laicas como a norte-americana? Vomitam-se teorias sobre as relações entre os valores individualistas e as execuções rotineiras no Texas.
Mas entre o Irã e os Estados Unidos os efeitos são rigorosamente os mesmos. O que também vale para a China, onde a pena de morte se tornou uma ferramenta para disciplinar uma massa de 1,3 bilhão de habitantes, provavelmente desestabilizada por mudanças radicais que a sociedade sofreu no pós-Maoísmo.
A pergunta básica é dos limites do Estado. Suas atribuições punitivas podem e devem ser limitadas. O Estado não tem o direito sobre a vida de seus cidadãos, mesmo que sejam homicidas ou traficantes.
Não incorramos no erro de "canonizar" um brasileiro morto na Indonésia porque se trata de "um dos nossos", alguém ligado às mesmas raízes que nos abastecem culturalmente. Esse senhor foi um criminoso incontestável. Não traz rigorosamente nenhuma característica para se tornar um herói nacional.
Do outro lado de sua execução, no entanto, há a Indonésia como Estado assassino, como contrafação do humanismo e da justiça. Este sábado, em definitivo, foi um dia muito triste para todos nós.