Escândalo da VW reaviva paradoxo ético das marcas
Com manipulação e ações espertas de RP, mesmo os piores atos das empresas podem ser contornados. Mas até que ponto isso seria vantajoso?
O mundo se surpreendeu, nos últimos dias, com a notícia de que a Volkswagen fraudou os chips de controle de emissões de seus veículos a diesel. A montadora teve o propósito de ludibriar a autoridade de controle ambiental dos Estados Unidos, a Environmental Protection Agency (EPA). Com esse ardil, os veículos da marca se mostravam não poluentes nos testes realizados pela EPA.
Ainda não se tem notícia de nenhuma morte ligada ao caso, como ocorreu anos atrás em escândalos envolvendo a Mitsubishi e a Ford. Mas são imensos os prejuízos de imagem da marca, assim como os monetários.
A empresa pode ser multada pela EPA em US$ 18 bilhões de dólares (embora eu duvide que esse valor venha a se concretizar). Outros fabricantes do setor também, sem contar a Audi, que pertence ao grupo, também serão prejudicadas, levando em conta a importância do “branding de categoria”. A VW, portanto, feriu não apenas a sua marca, mas carregou junto também a reputação da categoria, principalmente a alemã.
Mas qual seria o benefício que levou uma marca de tal importância a falsificar dados, mentir para as autoridades e correr o risco de violentar a confiança de seus públicos, além de comprometer a reputação da categoria?
Por que colocar a perder uma marca capaz de superar os traumas de sua associação com o nazismo, e se consagrar no século 21 como um dos símbolos de tudo de bom que a indústria alemã (e só ela) pode oferecer?
É possível buscar uma explicação na obra de Edward Bernays, o teórico americano que fundamentou o conceito de relações públicas. Sobrinho de Sigmund Freud, Bernays estudou e explorou os fundamentos propostos pelo tio.
Os estudos que desenvolveu para grandes corporações e no assessoramento de políticos se tornaram fundamentais para se entender a comunicação corporativa de marcas e negócios, especialmente na economia do conhecimento.
Ele convenceu os públicos endinheirados de que os consumidores são conduzidos por forças irracionais. Por exemplo, quando se estoura o limite do cartão de crédito. Em seus seminários, Bernays defendia que as pessoas não precisavam realmente comprar um colar de diamantes de US$ 1 milhão, ou um carro do mesmo valor. Mas, se o fizessem, se sentiriam muito melhor.
A conexão emocional do sujeito ao seu entorno material é um dos fundamentos do pensamento de Bernays. De repente, a sua plateia se deu conta que era possível levar as pessoas a exagerar nas compras, votar em políticos errados e tomar outras decisões puramente baseadas em recursos emocionais.
Bastaria mergulhar no pensamento mais profundo de qualquer indivíduo, ou grupo de indivíduos, e manipulá-los com os estímulos corretos e os gatilhos imaginários. Medo, prazer, vaidade e arrogância são quatro dos recursos com enorme potencial de manipulação e, de fato, os mais utilizados.
No mundo atual da comunicação de marcas, identificar, explorar e manipular as emoções dos diversos públicos envolvidos tornou-se uma necessidade incontestável, ainda mais nas relações virtuais de consumo.
Mesmo que uma prática pareça ser algo imoral, ilegal ou apenas engorde, não parece socialmente abominável, pois o comportamento médio das pessoas sugere o contrário.
Veja o caso do iPhone. Os consumidores sabem que não é sensato esperar que o aparelho mal chegue a durar dois anos, assim como sabem que daqui a seis meses sairá um modelo um pouco melhor. Os aficionados não se importam, pois “precisam” sempre mostrar que possuem as versões mais novas.
A massa de consumidores parece ter um padrão, pelo qual, na média, não importa muito conhecer a funcionalidade, durabilidade ou o padrão ético de quem lhes vende aquilo de que gostam e que lhes dará doses de satisfação emocional.
São guiados por um anseio incontrolável para a satisfação momentânea da vontade de consumir. O qual parece entorpecer a seletividade de valores, a ponto de fazer com que as pessoas se esqueçam rapidamente dos deslizes corporativos e continuem a comprar.
Os consumidores não hesitam até em pagar mais por um produto que dure cada vez menos. A reposição acelerada de bens move a sociedade de consumo e faz cada vez mais pessoas entrar no mercado.
A utilidade dos princípios de Bernays para a RP não se limita a fazer desabrochar e repicar o consumo. Também é fundamental nas crises de imagem, ajudando marcas feridas de morte a ser curadas e prosseguir rumo à almejada eternidade. Os truques e recursos são basicamente os mesmos, ainda que exista uma grande diferença nos estilos.
Enquanto a manipulação das mentes para o consumo normalmente é acompanhada do rufar de tambores e trompetes com notas subliminares, o esmaecimento de uma crise de imagem acompanha as ações tocadas por harpas e flautas, aparentemente inaudíveis ante o estrondo das críticas.
A constatação do sucesso de uma estratégia desse tipo de manipulação vem em duas etapas. Depois da indignação inicial, se manipuladas da maneira correta, as pessoas mal se lembrarão que os administradores de suas amadas marcas cometeram atos que causaram a morte de mães, pais e crianças, acabaram com a poupança de aposentados doentes e assim por diante. Duas provas dessa tese.
No início dos anos 2000, a polícia do Japão começou a investigar mortes envolvendo os caminhões da Mitsubishi Motors. Em um dos acidentes, uma roda se soltou do eixo de um caminhão e atingiu uma mãe de 29 anos.
Outros acidentes foram relacionados à marca, no que veio a ser o maior escândalo da história da indústria automobilística japonesa.
A montadora reconheceu que defeitos graves em 800 mil veículos foram ocultos desde os anos 80 e não tiveram recall. Vários executivos foram presos. No entanto, contrariando a crença na época, a Mitsubishi sobreviveu ao escândalo.
No segundo caso, a Ford passou por vários episódios que deveriam ter abalado sua reputação. A começar pelo fato de seu fundador Henry Ford, um antissemita confesso, ter apoiado e feito negócios com Adolf Hitler.
Na década de 1970, erros de projeto no modelo Ford Pinto causaram várias mortes. No ano 2000, por causa de acidentes com o modelo SUV Ford Explorer, a marca voltou às manchetes, em companhia da Firestone.
Entre acusações mútuas das duas empresas e até ser realizado o recall de mais de 6 milhões de pneus, morreram cerca de 200 pessoas. Todos os episódios foram contornados com estratégias de RP.
Ainda não há dados para afirmar que a fraude da Volkswagen tinha como motivo benefícios econômicos tangíveis.
Por exemplo, com os custos de adaptação dos motores e veículos aos supostos rígidos controles da EPA a todas as indústrias do setor. Mais barato para a VW, é claro, seria trocar o chip de controle de emissões!
No entanto, vamos supor que a causa da VW fosse ainda mais nobre do que a de economizar em custos e satisfazer as exigências dos acionistas por lucros trimestrais continuados. Acreditemos que o objetivo da montadora fosse o de corresponder sinceramente às normas da EPA.
Não porque o órgão exigira, mas como uma feliz correspondência ao seu compromisso socioambiental, que tem lugar de destaque nos relatórios anuais da administração, dirigidos ao público e aos acionistas.
Imaginemos, ainda, que entre a publicação do relatório e aplicação da norma não houvesse tempo suficiente para adaptar os motores e veículos nos Estados Unidos. Nessa causa justíssima, a empresa se veria diante de pelo menos duas hipóteses.
Na primeira, interromperia as vendas naquele país até estar em conformidade com os ditames da EPA. Isso, é lógico, resultaria na perda de receitas e participação de mercado, derrubada no valor das ações e assim por diante. Na segunda hipótese, ela poderia simplesmente adaptar os chips ligados ao controle de emissões para se encaixar às normas, o que daria a VW algum tempo para fazer as coisas certas e desejadas para a boa imagem da marca, inclusive do seu posicionamento ambiental.
Se o que valem são os resultados e não os métodos, fica mais fácil entender quais emoções dirigiram a decisão da marca.
E agora, o que pode acontecer com a VW? Vejo que pouca coisa, além de mais alguns mea culpa, a perda de alguns trocados, possivelmente amenizada pelo fechamento de algumas fábricas, cortes nos investimentos de PD&I, e mais gastos de propaganda para enaltecer a tradição da marca e reforçar os seus supostos compromissos, além de outras medidas temporárias de contenção e de compensação.
E quanto às questões morais envolvidas? Elas permanecem cada vez mais importantes, embora muitas empresas pareçam julgar que não, porque continuam vendendo e até aumentando os lucros.
Eis aí o paradoxo da nova ética na comunicação de marcas, na qual parece reinar um clima de vale tudo.
Ao fim e ao cabo aceita-se que coisas ruins acontecem o tempo todo com todo mundo. Na mente média do público, acredita-se que as grandes marcas são sempre capazes de “resolver as coisas”.
Se bons negócios puderem ser cada vez mais aliados à satisfação emocional, então vale a pena sossegar os códigos morais.
Olhando de outro ângulo, porém, existe um terreno ainda fértil nos conceitos desenvolvidos por Bernays: o branding corporativo.
Do mesmo modo que se costuma estimular e manipular os medos e desejos das pessoas em busca de lucros, é igualmente possível estimular e atender o desejo sincero de outras tantas em associar a vontade de comprar produtos melhores, econômicos, ecológicos e compartilháveis.
Espera-se que eles sejam fabricados por empresas de fato preocupadas com os sentimentos dos outros. Não porque as leis se tornaram mais rígidas, a fiscalização mais severa, executivos podem ser presos e o valor das multas chegar à estratosfera.
Não faltam evidências de que os consumidores estão cada vez mais desejosos de aderir aos produtos e serviços de empresas em que possam realmente confiar.