A verdade sobre a "pós-verdade"
Eleita expressão do ano pelo dicionário de Oxford, no Reino Unido, significa aquilo em que acreditamos -não pela veracidade dos fatos, mas pelas emoções que nos provocam
Acreditar que os modismos que chegam de fora são fundamentais para entender o que ocorre no Brasil não é um bom procedimento.
Deixa-nos atrelados a condições culturais e políticas que não são as nossas. Mas a expressão "pós-verdade" é uma exceção, porque nos faz pensar.
Mas afinal, o que é pós-verdade? Ela foi escolhida pelo dicionário produzido pela Universidade de Oxford, do Reino Unido, como a expressão típica de 2016.
Significa alguma coisa que ganha credibilidade pelas emoções e crenças pessoais que desperta, e não em razão de fatos objetivos.
Existe a pós-verdade quando Lula e seus amigos qualificam a Lava Jato como uma conspiração para desqualificar os direitos conquistados pelos mais pobres.
Ou quando as redes sociais divulgam que o governo distribuirá carteiras de trabalho nos berçários das maternidades, para que os bebês cheguem um dia à aposentadoria, com as regras draconianas agora propostas para a Previdência.
Ou então, em determinados casos, quando um produto é uma oferta na Black Friday, e o varejista maquia os preços para levar vantagem sobre o consumidor.
Para resumir, a pós-verdade pode ser quase tudo. Para driblá-la, cada cidadão precisaria ser assessorado por especialistas ao ler o noticiário político, tentar entender uma determinada diretriz social do governo ou então, como consumidor, aproximar-se de um produto ou serviço.
Mas os filólogos ingleses da Universidade de Oxford não descobriram nenhuma novidade.
Se, de um lado, a verdade é o que todos nós acreditamos conhecer em nosso dia a dia, de outro lado a verdade é uma coisa bem mais complicada. A Filosofia nasceu há pouco menos de 2.500 anos justamente porque se preocupou com o assunto.
Para complicar o mínimo possível essa explicação, digamos de início que a pós-verdade já está há bons séculos na lingua portuguesa. Mas sob uma outra palavra: verossímil.
O verossímil é aquilo que tem todo o jeitão de verdade, mas não é necessariamente verdade. Os gregos usavam para isso a palavra doxa.
De onde surgiu em português a palavra paradoxal, aquilo que pode ser verdade, apesar de não ter o jeitão de sê-lo.
Se tomarmos distância para enxergar melhor as coisas, descobriremos que o verossímil – ou a pós-verdade – é bem mais antigo que a opinião pública, que surgiu na mesma época – final do século 18 - que a democracia representativa ou o próprio mercado, como sistema de livre produção e comercialização de bens e serviços.
O verossímil (ou doxa) apareceu na história com a primeira tentativa da humanidade de adotar políticas de governo discutidas pelos cidadãos. Foi em Atenas, no século 5º antes de Cristo.
Foi o chamado século de Péricles, que era o governante da cidade-estado ateniense. Naquela época, política e filosofia eram mais ou menos a mesma coisa, porque os governantes e os filósofos procuravam convencer os cidadãos que tinham a verdade como único objetivo.
Claro que não era apenas uma questão de ponto de vista. Péricles e os que pensavam como ele eram apoiados por Platão ou Aristóteles.
Enquanto os demagogos, que chegaram ao poder com governantes como Hipérbolo (vem dele a palavra que designa quem fala muito), aceitavam a demagogia, porque ela era o caminho mais curto para o convencimento.
Por coincidência, os políticos e os filósofos tinham o mesmo adversário no jogo pela conquista da opinião da maioria. Esse adversário, grosso modo, eram os sofistas.
Para o sofista, a verdade não era tão importante. O importante era o que poderia ser convincente.
Se eu, como bom orador, conseguisse convencer os cidadãos reunidos na Ágora que determinada previsão era a melhor, pouco importa que ela fosse verdadeira. O importante é que todos se convencessem de que era esse o caminho.
E os sofistas estavam tão encantados com a impressão de superioridade de Atenas que não perceberam que Esparta representava uma ameaça militar verdadeira, que conquistou Atenas e acabou com a democracia ateniense em 403 antes de Cristo.
Essa história pode parecer meio chata. Mas ela é importante por dois motivos. Em primeiro lugar, demonstra que os filósofos (e, por extensão, os bons políticos) não se contentavam com a pós-verdade.
E o segundo motivo é que desse confronto, entre filósofos e sofistas, exerceu-se pela primeira vez a política e, com ela, nasceu nem mais nem menos que a história, segundo reflexão exemplar do helenista francês François Châtelet (1925-1985).
Mas voltemos ao Brasil atual. Quando os partidários de Dilma gritavam "não vai ter golpe!", eles estavam vergonhosamente mergulhados na pós-verdade.
Quando os partidários de Temer acreditavam idilicamente que o documento "Uma ponte para o futuro" colocaria de imediato o país nos trilhos virtuosos, eles também minimizavam as dificuldades e escorregavam na pós-verdade.
A pós-verdade estava também presente na campanha de Donald Trump. Uma instituição especializada na checagem de afirmações eleitorais descobriu que 74% das afirmações dele eram inverídicas ou verdades aproximadas. Trump é a reencarnação dos sofistas. Fernando Collor também o foi, ao se eleger no Brasil em 1989.
Em resumo, pós-verdade é algo tão velho quanto andar para a frente. Saber que ela existe não vai transformar o mundo. Mas é um detalhe importante da linguagem cotidiana que nos ajuda a ser mais espertos.
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