A velha caderneta do fiado está de volta
Pesquisas mostram que o uso da caderneta no ano passado foi mais intenso nas camadas com menor renda, que são as mais afetadas pelo desemprego e pela recessão
Edilson de Oliveira (na foto acima), dono do Mercadinho Sambelar, no bairro Vila Jerusalém, em São Bernardo do Campo (SP), tem enfrentado tempos difíceis.
Desde que abriu a pequena loja com dois caixas, há 21 anos, aceita vender na caderneta para os moradores conhecidos do bairro. A venda fiado para conhecidos era uma forma de fidelizar a clientela, oferecendo um atrativo em relação à loja do hipermercado Carrefour que fica na vizinhança.
Mas, de um ano e meio para cá, Oliveira tem desempenhado a difícil tarefa de recusar esse tipo de venda para desconhecidos. E não são poucos os que têm procurado a loja para comprar pela caderneta.
“Recebo entre 10 e 15 ligações por mês de gente pedindo fiado. Outros vem à loja e encontram clientes marcando a compra na caderneta e também querem o mesmo benefício. A procura pelo fiado aumentou muito”, conta o microempresário.
A velha e tradicional compra na caderneta para pagar só no final do mês voltou a ganhar força no último ano por causa da recessão.
Em 2016, até meio milhão de famílias começaram a adotar o pagamento fiado para abastecer a despensa com itens básicos, como alimentos e produtos de higiene e limpeza, e driblar o aperto no orçamento doméstico.
No ano passado, 14,1 milhões de famílias usaram ao menos uma vez a caderneta para ir às compras nos mercadinhos de bairro, padarias e açougues, segundo pesquisa da consultoria Kantar Worldpanel, que visita mensalmente 11,3 mil domicílios.
A amostra retrata os hábitos de consumo das 52 milhões de famílias do País. No ano anterior, 13,5 milhões de famílias tinham usado ao menos uma vez a caderneta como forma de pagamento.
"A tendência era de o fiado ir desaparecendo, mas voltou a crescer no último ano", afirma a diretora Comercial e de Marketing da consultoria, Christine Pereira.
Ela lembra que, apesar da proporção ser pequena, de 26% para 27% das famílias pesquisadas, nove anos atrás esse número era bem maior: 45% das famílias faziam as compras de itens básicos anotando na caderneta e quitavam a conta no fim do mês.
O avanço do fiado também é apontado pela consultoria Nielsen, que visita duas vezes ao mês 8,2 mil domicílios.
Com metodologia diferente, os números das duas pesquisas ficam distantes, mas a tendência de crescimento é a mesma.
"Identificamos que 1,178 milhão de donas de casa compraram fiado ao menos uma vez ao longo de 2016 em todo Brasil", diz Raquel Ferreira, especialista em Conhecimento do Consumidor da consultoria.
Ela observa que, deste total, 226,5 mil novos consumidores também passaram a adotar essa forma de pagamento no último ano.
A especialista lembra que até 2015 essa modalidade de pagamento caía, em média, 6% ao ano. Ela atribui a virada ao aumento do desemprego.
Christine concorda com Raquel e ressalta que a volta do fiado é uma alternativa do consumidor ao bolso apertado por causa da crise.
Segundo ela, quando o tripé renda, emprego e inflação estavam bem, o consumo ia de vento em popa.
Mas nos dois últimos anos os três pilares fracassaram e as compras recuaram. A saída foi buscar alternativas como a compra por caderneta. Esse movimento, segundo ela, explica o avanço do fiado por conta da crise.
De toda forma, Christine considera muito disseminado ainda o uso da caderneta no País.
Pesquisa da Kantar Worldpanel aponta que a caderneta é o quarto meio de pagamento escolhido pelo brasileiro nas compras de produtos básicos, perdendo para o dinheiro, o cartão de crédito e o cartão de débito, mas ainda à frente do cheque e do tíquete alimentação.
As duas pesquisas mostram que o uso da caderneta no último ano foi mais intenso nas camadas com menor renda, que são as mais afetadas pelo desemprego e pela recessão.
De acordo com os dados, 38% das classes D/E e 28% da classe C informaram que fizeram uso do fiado no ano passado, ante 27%, que foi a média nacional.
Geograficamente, a maior utilização do fiado em 2016 e ocorreu nas regiões mais pobres, Norte e Nordeste, com 39% de participação, e nas cidades do interior do País (32%). Já na Grande São Paulo, no Sul e no Centro-Oeste, onde a renda média é maior, o uso do fiado foi menor do que a média.
FOTO: Felipe Rau/Estadão Conteúdo