PT descobre que pobre não quer socialismo. Quer mercado
Pesquisa da Fundação Perseu Abramo, na periferia paulistana, encontra valores mais próximos do liberalismo econômico, com apelo de menos Estado e menos impostos
Uma das maneiras de descobrir a decadência eleitoral das esquerdas consiste em constatar que elas não têm a mínima ideia sobre o que pensa a população mais pobre, que, na imaginação de seus dirigentes, teria afinidades esquerdistas.
Em verdade, o pobre critica o Estado e a excessiva burocracia, sente-se incomodado pela carga tributária e acredita no empreendedorismo. O pobre não é de esquerda. No sentido restrito, o pobre é liberal.
Essas são as conclusões, por espantosas que pareçam, de pesquisa feita pela Fundação Perseu Abramo, (leia aqui) que vem a ser o braço teórico do Partido dos Trabalhadores e que tem Dilma Rousseff como presidente de seu conselho curador.
A fundação se questionou sobre o desaparecimento do chamado “cinturão vermelho” de São Paulo. O PT acreditava ter simpatias arraigadas nas periferias paulistanas e nas comunidades (favelas).
Mas o cinturão votou no tucano Aécio Neves e não em Dilma, nas eleições presidenciais de 2014, e no tucano João Doria, nas municipais do ano passado, quando Fernando Haddad, o candidato petista à reeleição, teve apenas 17% dos votos.
Uma reação leviana sobre o desapego dos mais pobres pelo PT estaria em acreditar que essa população acabou incorporando os valores cultivados pelos mais ricos.
Seria a concepção clássica que o marxismo tem da ideologia. Ou seja, um sistema de representações difusas pelo qual a classe dominada incorpora como “natural” o pensamento das classes dominantes.
De certo modo, o senso comum entre os petistas consiste em acreditar que os mais pobres são manipulados pelas forças conservadoras que promoveram o “golpe” contra a ex-presidente Dilma.
Por honestidade intelectual, no entanto, não foi esse o ponto de partida da Fundação Perseu Abramo.
A instituição conduziu a pesquisa entre pessoas que nas eleições anteriores (2010 e 2012) haviam votado no PT, 30% das quais haviam sido beneficiadas por programas sociais do lulo-petismo, como o Bolsa Família ou o Fies (financiamento de faculdades privadas).
POBRE NÃO SABE O QUE É LUTA DE CLASSE
Não foi uma pesquisa quantitativa, na qual os pesquisados respondem a um questionário, a seguir tabulado com extratos de porcentagens.
Foi uma pesquisa qualitativa, entre 22 de novembro e 10 de janeiro, que é bem mais difícil em sua metodologia. Reúnem-se grupos e submetem-se temas que eles passam a discutir livremente.
As três principais conclusões dos pesquisadores foram as seguintes:
1 – “No imaginário da população não há luta de classes; o ‘inimigo’ é, em grande medida, o próprio Estado, ineficaz e incompetente, abrindo espaço para o ‘liberalismo popular’ com demanda de menos Estado”.
2 – “A dimensão da vida pública é muito rarefeita e quase sempre a noção de “público” é tratada como sinônimo daquilo que é de graça”. Nesse sentido, a própria relação com a esfera pública está mediada por interpretações próprias ao mercado.
3 – De modo geral, a visão de mundo não ocorre em comparações que se faça ao grupo ao qual se pertence. Os desejos e as expectativas das pessoas se definem com relação a um futuro de uma ascensão material.
Em suas 67 páginas divulgadas na semana passada, a pesquisa não esconde o desapontamento dos pesquisadores, que, no entanto, já sabiam o que o mapeamento eleitoral das periferias já esboçava.
Se as periferias sofreram com os efeitos da crise econômica – em cujas causas a Fundação Perseu Abramo diplomaticamente não entra no mérito-, seus habitantes “passaram a reagir informados por horizontes menos associativistas e comunitaristas, e mais por diretrizes marcadas pelo individualismo e pela lógica da competição, com uma tônica acentuada do mérito”.
Os entrevistados não utilizam, para definirem a si mesmos ou seus supostos adversários políticos, palavras como “coxinha”, “conservador” ou “progressista”, noções que “não habitam o imaginário dessa população”.
Dentro dela, não há o jogo do “nós” contra o “eles”, tradicional nos últimos anos para a firmação da identidade militante petista.
LEIA, OUÇA E ASSISTA AO MULTIMÍDIA COMO O EMPREENDEDORISMO EVOLUI NAS FAVELAS
Assim, as periferias não estão imersas nas disputas da classe média alta e do petismo com chantilly.
Aliás, mesmo com uma renda familiar de dois salários mínimos, os entrevistados não se consideram pobres. A pobreza, para eles, se dá para quem não tem onde morar ou está sem dinheiro para a alimentação.
Outra revelação que assustou os pesquisadores: “trabalhador e patrão são diferentes, mas não exis¬te na linguagem relação de exploração: um precisa do outro, estão no mesmo barco.”
Ainda entre os exemplos de sustos, “para os entrevistados, o principal confronto existente na sociedade não é entre ricos e pobres, en¬tre capital e trabalho, entre corporações e trabalhadores.
O grande confronto se dá entre Estado e cidadãos, entre a sociedade e seus governantes”.
SÓ COM TRABALHO SE SOBE NA VIDA
Há a nítida quebra de um dos paradigmas das esquerdas, para as quais aquele que subiu na vida adota de imediato a máscara do explorador.
Mas os entrevistados da Fundação Perseu Abramo estão embaixo, mas aspiram chegar onde estão os que trabalharam muito e se estabilizaram numa posição confortável porque distante da pobreza.
E aqueles que ascenderam socialmente são previsivelmente invejados e vistos como modelos.
Com relação a eles, inexistem separações ideológicas, já que são citados, lado a lado, Silvio Santos, Lula e João Doria.
O fato é que, apesar de estarem diante dos olhos com um instrumento poderoso de conhecimento de suas próprias limitações, os comuns dos petistas reagem como se nada tivessem entendido.
Cito alguns exemplos que começaram a circular quinta-feira nas redes sociais, sem mencionar nomes porque os envolvidos não foram contatados para autorizar suas identificações.
“Isso é previsível, porque estão todos escravizados pela TV Globo”, disse um deles. “O único problema com a pesquisa é que ela foi feita imediatamente após a vitória de Doria em São Paulo, com seu discurso empreendedor”, disse outro.
Em meio a posições rasas, duas mais sofisticadas:
1 – “O proletariado clássico descrito por Marx e Engels no século 19 não existe mais. O que existe é o povo evangélico da periferia, e a a grande questão é como trazer essas pessoas doutrinadas na "teologia da prosperidade" para o campo democrático-progressista.”
2 – “A leitura da pesquisa vai causar grande dissonância cognitiva em muita gente. Especialmente a parte que trata das visões a respeito de mercado, Estado, meritocracia e relação capital/trabalho.”
PT NÃO PODE COBRAR O QUE NÃO ENTREGOU
De uma certa forma -e excetuado o projeto de poder que descambou para Mensalão, Petrolão e corrupção no varejo e no atacado-, o susto do PT com essa pesquisa é compatível com a ideologia invertebrada que o partido historicamente praticou.
Ao ser fundado, em 1979, de suas três principais correntes internas (católica, universitária e sindical), só a mais fraca, aquela formada por professores do ensino superior, queria o socialismo. As demais se contentavam com justiça social.
Com Lula na Presidência da República, a partir de 2003, o PT passou a se ver como uma força distributivista numa sociedade com fortes diferenças de renda.
Razão pela qual o Bolsa Família, ressuscitado do período FHC, passou a ser visto como uma política de esquerda, quando havia sido recomendado pelo Banco Mundial e implantado por governos conservadores no México ou no Chile.
Em conclusão, o petismo não pode cobrar dos mais pobres aquilo que ele próprio não entregou.
Se entre os dois governos de Lula e o primeiro de Dilma a economia brasileira cresceu – e com ela a periferia paulistana – é porque, num ambiente internacionalmente favorável, os pobres trabalharam muito para ficarem menos pobres.
A recessão de Dilma os mandou de volta para a pobreza anterior. E eles aprenderam a lição. Não dependem dos governos, e sim de si mesmos, para tentar subir na vida.
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