2015, o ano em que Dilma contornou o impeachment
Presidente sobreviveu à recessão, às pedaladas fiscais e a uma Câmara dos Deputados na maioria favorável à interrupção de seu mandato
Dilma Vana Rousseff foi reeleita em 26 de outubro de 2014. Mas antes mesmo de tomar posse para o novo mandato, no primeiro dia de janeiro, sua popularidade já estava em franco declínio, em razão de indicadores econômicos negativos, habilmente camuflados durante a campanha eleitoral, e daquilo que o senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP) já denunciava, em novembro, como pedaladas contra a Lei de Responsabilidade Fiscal, num comportamento passível de impeachment.
A verdade, no entanto, é que a presidente termina 2015 no Planalto e nada indica, por enquanto - em razão da definição pelo STF da tramitação de seu caso no Congresso, em ritual que lhe é favorável -, que ela possa ser afastada. Mesmo assim, os 12 primeiros meses do Dilma-2, um tanto trágicos para a política e para a economia, entrarão para a história recente da República como o ano do impeachment que não aconteceu.
Os pouco mais de 51% dos votos que ela recebeu se tornaram apenas 23% de avaliação ótima ou boa na pesquisa Datafolha publicada em fevereiro, quando a avaliação ruim ou péssimo chegava a 44%. Seguindo ladeira abaixo, Dilma obtinha 71% de ruim e péssimo em agosto e míseros 8% de ótimo e bom. Recuperou alguns pontos até dezembro, mas traz ainda a maior impopularidade desde o governo Fernando Collor (1990-1992).
Ao mesmo tempo, e com o pique de 66% em Datafolha de agosto, permaneceu majoritária a fatia da população que a queria fora da Presidência.
Para tanto, contribuíram fatores já amplamente estudados. Há em primeiro lugar o “estelionato eleitoral” pelo qual a presidente transmitiu durante a campanha de 2014 a imagem de um país próspero que não mais existia. A seguir veio o descrédito da narrativa segundo a qual a crise vinha de fora - sobretudo com a queda no volume de commodities importado da China -, quando, em verdade, o país mergulhara numa caótica situação fiscal, provocada pelas pedaladas e por gastos excessivos que não tinham como contrapartida a necessária receita.
A chamada “nova matriz econômica”, com o Estado estimulando o consumo e cortando tributos de setores de maior mão-de-obra, já estava uma vez por todas engavetada. O ajuste fiscal era fundamental, e para tanto Joaquim Levy esteve até dezembro no Ministério da Fazenda, o que provocou dentro do Partido dos Trabalhadores, no Planalto, no Congresso e fora deles, o diagnóstico de que a recessão vinha do ajuste e não do modelo econômico insustentável.
Tal versão, no entanto, esbarrava na sociedade, no mercado e nos meios de oposição. Estes, os institucionais como o PSDB, o DEM e o PPS, foram de certo modo atropelados em 15 de maio, pelas 160 manifestações de rua (220 mil pessoas só em São Paulo) , em que movimentos horizontais, como o Vem Pra Rua, assumiam o controle segundo o modelo que surgira em junho de 2013 com os atos públicos do Movimento Passe Livre.
Uma das trincheiras de Dilma poderia ser idealmente construída dentro do próprio Congresso, já em fevereiro, onde os partidos de oposição eram minoritários. Mas ela e seus assessores acreditavam que seria mais prático romper de vez com a frágil unidade do PMDB, por meio de uma chapa petista para a presidência da Câmara dos Deputados, encabeçada por Arlindo Chinaglia (SP).
Mas deu já no primeiro turno Eduardo Cunha (RJ), peemedebista de ampla lealdade oficial aos governos Lula-1, Lula-2 e Dilma-1 - fator que estaria na origem dos fundos depositados na Suíça. Ele cumpriu com maestria a tarefa de infernizar a presidente.
Dilma precisou, nos meses seguintes, acumular energias para lutar simultaneamente contra muitos adversários do projeto de terminar seu mandato presidencial. O horizonte se congestionou.
Não havia apenas o senador Aécio Neves (PSDB-MG), seu adversário de outubro de 2014 e cujo nome passara a líder as pesquisas de intenção de voto em caso de nova eleição presidencial. Havia também Cunha e seu grupo em plenário e, correndo discretamente por fora, o vice-presidente Michel Temer, virtual herdeiro do Planalto em caso de impeachment. E havia, por fim, as ruas, onde os partidários de Dilma só se tornaram majoritários nas manifestações de dezembro.
Nesse meio-tempo a presidente se agarrava ao mandato com planos de curto e médio prazo. Fez de tudo para que o Tribunal de Contas da União não reprovasse suas contas do último ano do mandato anterior. Mas perdeu por 9 votos a 0, depois do desgaste de inutilmente procurar destituir o relator da matéria.
Promoveu em outubro uma reforma ministerial que ampliou a presença do PMDB no governo, mas em troca o partido majoritariamente votou com a oposição, em dezembro, na escolha da comissão da Câmara, inviabilizada pelo STF, que pilotaria regimentalmente o processo de impeachment.
A reforma no governo (redução de 39 para 31 no número de ministérios) foi ainda um tiro que saiu pela culatra no objetivo de desinchar a máquina do Estado. Os 8 mil cargos de confiança que o Planalto pretendia cortar permaneceram com seus ocupantes, já que ele não pertenciam à presidente, mas aos ministros que recebiam suas pastas “de porteira fechada”, ou seja, com plena liberdade de fazer nomeações.
O ano de 2015 foi também ruim para o PT em razão da Operação Lava Jato, desencadeada em maio de 2014 e que se acelerou em Curitiba sob o comando do juiz federal Sérgio Moro. João Vaccari Neto, tesoureiro do partido, foi preso em abril e meses depois condenado a 15 anos de prisão por envolvimento em propinas da Petrobras.
Bem mais que a prisão de empreiteiros e de um banqueiro, Vaccari é um homem-chave dentro de um segundo processo que debilitou a presidente - aquele em que ela e seu vice poderiam em tese perder o mandato, caso a Justiça Eleitoral comprove que a campanha de 2014 foi em parte beneficiada pelo propinoduto da estatal.
A equidistância da presidente com a Lava Jato e sua surda hostilidade (“não respeito os delatores”) se desdobraram com o acúmulo de informações da Polícia Federal e do Ministério Público no mínimo negativas para o ex-presidente Lula, que precisou concentrar energias para defender a si próprio e a seus familiares, em lugar de se dedicar integralmente à defesa do mandato de sua sucessora, num projeto que teoricamente permitiria que ele voltasse ao Planalto em 2018 (mas ele hoje seria derrotado por seus principais concorrentes, segundo o Datafolha e o Ibope).
Dois fatores beneficiaram Dilma Rousseff ao longo dos meses. O primeiro consistiu em contrapor sua vida pessoal àquela de seu principal algoz institucional, o deputado Eduardo Cunha, cuja reputação se tornou cada vez mais indefensável. Por esse jeitinho retórico, o impeachment não passaria de pura vingança pessoal de Cunha, e não do produto de uma bem-fundamentada petição encaminhada à Câmara dos Deputados por Hélio Bicudo, Miguel Reale Júnior e Janaína Paschoal - que comprovaram a existência de pedaladas fiscais em 2014 e 2015.
O segundo fator esteve na associação da ideia de impeachment à de golpe. Em razão de sua vida pessoal limpa - o que em verdade ninguém colocou em dúvida - Dilma conseguiu que sua pessoa jurídica, a da presidente da República, se escondesse por detrás de sua pessoa física, a de mulher honesta. Com isso, se evaporaria o crime de responsabilidade fiscal e viria à tona o projeto de golpe institucional, articulado “por setores conservadores” da sociedade e da mídia, que, supostamente apegados ao elitismo, hoje reagem aos 13 anos de inclusão social de governos chefiados pelo PT.
A soma desses dois fatores encontrou campo discursivamente fértil numa sociedade altamente polarizada e com as versões favoráveis ao governo ampliadas pelas redes sociais. Por mais que o ajuste fiscal - em verdade quase inexistente - seja apontado por essas narrativas como o único responsável pelo desemprego, pela inflação e pela queda da produção, mistura-se a esse curioso angu de linguagem a teoria do complô e do golpe contra Dilma. Ou à dicotomia entre a presidente honesta e o moralmente indefensável presidente da Câmara dos Deputados.
Em resumo, apesar de sua proverbial inabilidade política, Dilma Rousseff sobreviveu ao primeiro ano, e são hoje pequenas as possibilidades de que ela a médio prazo sofra o impeachment. Mesmo assim, foram 12 meses em que a presidente priorizou a preservação do mandato aos atos próprios de seu governo, em que ela esborrifou fisiologismo sobre deputados e senadores, em detrimento do aperfeiçoamento e ganho de eficiência da máquina do Estado.
Ou seja, não foi apenas no PIB que o Brasil andou para trás.